Nogueira, Carlos. “As Orações tradicionais de Loulé”. Culturas Populares. Revista Electrónica 8 (enero-junio 2009).

http://www.culturaspopulares.org/textos8/articulos/nogueira.htm

 

ISSN: 1886-5623

 

 

 

As Orações tradicionais de Loulé

 

 

Carlos Nogueira

Universidade Nova de Lisboa

 

 

Resumo: O concelho de Loulé, a partir do trabalho diligente de três estudiosas que souberam escutar a sabedoria de uma população sénior (maior ou jubilada, como com toda a propriedade humanista dizem os nossos vizinhos espanhóis), figura hoje na geografia das recolhas de literatura oral com categorizadas colecções. Nesta nota referir-nos-emos ao volume III, consagrado às Orações.

Palavras-chave: Orações, oralidade, Portugal (Algarve).

 

Abstract. Thanks to the work of three scholars that registered the kwoledge of the senior population, the region of Loulé figures nowadays in the geography of the collections of oral literature. In this paper we review the volume III of that compilation, wich collects Orações.

Keywords: Prayers, Orality, Portugal, Algarve.

 

 

1. Premissas

O

terceiro volume do Património Oral do Concelho de Loulé, o das Orações (Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 2008), que reúne mais de três centenas de versões inéditas, a que se acrescentam as publicadas nos dois volumes da obra Memória Tradicional de Vale Judeu, num total de 477 textos, é – e não custa prever que o será por muito tempo – a referência para esta especificidade textual: referência pelo número de textos, pela arquitectura taxionómica e pelas análises que Maria Aliete Galhoz propõe e que com certeza servirão de estímulo a outras recolhas, edições e estudos, pelo método do trabalho extensivo de campo realizado e explicado por Idália Farinho Custódio, pelo número de informantes (149), pela, enfim, articulação entre todas as fases do processo sensível de coleccionação a partir da tradição oral, de organização e de hermenêutica.

Isabel Cardigos, responsável pela classificação e pelas notas do volume de Contos, participa com um estudo muito informado e perspicaz sobre “As Tabuinhas de Moisés”; longo texto de protecção cujo poder que o orante lhe atribui implica uma recitação segura e sem erros, esta oração situa-nos bem no interior do imemorial e difuso horizonte antropológico da linguagem verbal integrada em rituais mágico-religiosos (ou em si mesma configuradora do ritual com que se espera desencadear uma resposta do sobrenatural)[1].

Nesta relação de implicação, rara pela elevada qualidade da obra, a Câmara Municipal de Loulé (e, em particular, a sua Divisão de Cultura e História Local) ultrapassou o que infelizmente ainda é muito comum entre nós: não se ficou pelo anúncio demagógico de um trabalho empenhado na área cultural; confirmando as boas intenções do seu corpo de agentes culturais, editou já, valendo-se da autoridade daquelas especialistas, sete valiosos volumes de literatura oral tradicional que cobrem todas as freguesias do município.

Refira-se, a este propósito, que há por todo o país edições muito significativas de literatura oral, tradicional ou popular com pouco ou nenhum impacto em termos de projecção da cultura local exactamente porque quem recolhe e/ou edita não solicita a colaboração de especialistas. Melhor: essas publicações garantem alguma auto-estima às comunidades envolvidas, que vêem o seu património valorizado pela fixação em registo escrito; dão à palavra oral uma eternidade que não existe sem essa técnica e esse formato de conservação (a palavra escrita e o livro); e podem implicar a devolução à oralidade de inúmeros textos (hoje e sempre, a oralidade literária escreve-se e a escrita da oralidade literária oraliza-se).

Mas é de prever que a maioria dos leitores mais desapaixonados, e com este adjectivo nomeamos aqueles que, por razões de natureza profissional ou não, decidam consultar esses livros, acabará por não se interessar por esse acervo: haverá quem se perca no intrincado e absurdo da arrumação textual e desista da leitura ou da busca de composições específicas, quem duvide da autenticidade dos textos ou da qualidade da transcrição, quem se desiluda com as opiniões sobre o corpus ou sobre o modo como tais opiniões são expendidas (num registo impressionista e vulgar, pretensa ou pretensiosamente culto que nada esclarece).

 

2. Descrição da recolha: pré-história de um livro, história de uma colecção

O que acima registámos muito de passagem sobre a amplitude da área da prospecção realizada ou dirigida por Idália Farinho Custódio, que não privilegia nem esquece qualquer freguesia do concelho de Loulé, já nos diz muito sobre a estratégia de uma recolha que pretende ser simultaneamente representativa e exaustiva. As quatro páginas da “Nota sobre a realização da pesquisa” são um autêntico programa que inclui todos os procedimentos a seguir por quem pretender efectuar com rigor, e sem quaisquer prejuízos para si nem para os informantes, uma recolha de textos tradicionais digna de ser publicada e de integrar o conjunto de boas colecções de literatura oral e tradicional. Rigorosa na definição de modelos de operacionalização e no estabelecimento de uma ética da recolha, esta “Nota” vale em si mesma, dizíamos, como plano de um curso sobre Património Literário Oral, que aliás Idália Farinho Custódio já ministrou no quadro das acções de formação promovidas pelo Centro de Formação de Professores das Escolas do Concelho de Loulé.

Quem, como nós, já se dedicou a uma prospecção de literatura oral sabe que se trata de uma actividade muito exigente em que há que conciliar o prazer pelos textos e o respeito pelas pessoas. A vertigem pelos materiais, digamos até o milagre da descoberta de uma versão rara ou nunca registada, não pode afastar-nos da experiência única, do sortilégio, para usarmos o mesmo conceito, que tem de ser o contacto com os informantes; ou a curto prazo perceberemos que ao nosso empenhamento falta o essencial: empatia sincera com os portadores dos textos que aspiramos publicar. Em última instância, é dos informantes a voz que se ouve em eco indelével a cada texto fixado e editado. Esquecer isto significa trair a memória individual e colectiva em proveito da construção de uma fútil e inglória reputação pessoal; ou nem isso, porque o mais provável é que esse alegado profissionalismo venha a implicar o fim prematuro da recolha. Só através da experiência de puro amadorismo, em todos os sentidos da palavra, é possível ser-se bem sucedido numa acção deste tipo.

Idália Farinho Custódio cabe nessa estirpe de colectores que, nas suas próprias palavras, são capazes de criar com os informantes “um processo natural”[2] (o acervo monumental que já reuniu não é única prova disso: é-o também o modo sincero como escreve e dá depoimentos orais, em que também se apresenta como intérprete, sobre as suas experiências de recolha); um processo que é dignificação dessa busca de sentido do sagrado que toda a oração persegue. Em termos de profundidade ética da recolha, esta ligação afectiva entre o colector e o informante resulta na descoberta participada do valor de herança do texto, voz de vozes de uma família e de uma comunidade, de que a exaustiva ficha que acompanha cada versão é o bilhete de identidade ao mesmo tempo definitivo e provisório, individual e colectivo (ficha em que se indica o lugar da recolha, o nome e a idade do informante, bem como o nome do colector e a data do registo). Donde, no quadro da enunciação, o registo de apontamentos como estes, que Idália Farinho Custódio opta por referir na “Nota”, de modo a não sobrecarregar o volume com repetições junto a cada oração: “É muito antigo. Aprendi com a minha mãe. E a minha mãe aprendeu com a avó dela. Ora, os anos que isto não tem?”[3].

Esta odisseia pelo património oral do concelho de Loulé não teria sido possível sem o estabelecimento e a gestão de uma rede de contactos numerosa e familiar. Mas um projecto que se concretizou em volumes sólidos e de referência também não poderia ter prosseguido sem a aplicação de uma rigorosa técnica de recolha. A eternização destas memórias e destas vozes, coligidas no “meio ambiente”[4] de cada um, exige, como se sabe, o recurso ao gravador, que inibe uns informantes e estimula outros, ou, dependendo do contexto, ora perturba ora ajuda o mesmo informante. Idália Farinho Custódio usou esta tecnologia adaptando-a ao ritmo de cada informante e orientando-a para a construção de versões sem amputações de circunstância: ao ouvirem a gravação, os informantes, “muito atentos, quando notavam alguma omissão, diziam-no. E a situação era sempre remediada. Ou gravávamos tudo novamente ou só o que tinha sido esquecido. Ou então era escrito num caderno que nos acompanhava, e com a garantia de que tudo seria reposto”[5]. Este caderno foi ainda fundamental para a anotação de dúvidas que, colocadas durante a gravação, seriam posteriormente esclarecidas pelos intérpretes-autores, que também clarificaram palavras e expressões incompreensíveis durante a transcrição.

           

3. Classificação do acervo

A classificação dos textos reunidos neste volume é da responsabilidade de Maria Aliete Galhoz, experiente e arguta investigadora a quem devemos sugestivos estudos introdutórios, notas sempre esclarecedoras da origem, significado e circulação de textos e catalogações de referência, que, numa procura constante de aperfeiçoamento, nunca ignoram as classificações, nacionais e estrangeiras, de outros autores.

No monumental Romanceiro Popular Português (2 vols., Lisboa, INIC, 1987-1988), que inclui uma secção de “Romances religiosos e orações narrativas”, a autora propõe uma organização que é um mapa rigoroso de uma especificidade textual instável e portanto útil a quem quer que venha a tratar romances, cantigas e orações narrativas; nos dois volumes de Memória Tradicional de Vale Judeu (Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 1996-1997), de que é co-autora com Idália Farinho Custódio, cria, no caso para um acervo de orações propriamente ditas, uma classificação por grupos de funções que servirá de base a futuras taxionomias; na edição crítica das Orações Populares de Portel (Lisboa, Edições Colibri / Câmara Municipal de Portel, 2001), Maria Aliete Galhoz aplica a sua preparação de filóloga apaixonada e consciente aos textos reunidos por J. A. Pombinho Júnior (revelando tanta paixão e seriedade na organização e fixação deste material como no tratamento de textos de Fernando Pessoa, em que trabalha desde 1960, com a publicação, no Brasil, da Obra Poética); nas Orações de Ligares (prefácio de Arnaldo Saraiva, Porto, Campo das Letras, 2001), a estudiosa, que três anos antes havia colaborado na estruturação e classificação das Rezas e Benzeduras de Aníbal Falcato Alves (organização e prefácio de António Simões, Porto, Campo das Letras, 1998), transcreve, classifica e anota os textos do acervo recolhido por Guerra Junqueiro.

            Maria Aliete Galhoz é pois uma autoridade ímpar na fixação, na classificação, no comentário, na análise comparatista e de conteúdos, na preparação de edições de literatura oral e tradicional portuguesa; uma autoridade, sábia e humilde, que não recusa apoiar quem, motivado para a recolha mas pouco ou nada preparado para a ordenação dos materiais ou para um enquadramento filológico e literário, em boa hora decide recorrer aos seus conhecimentos honestos e profundos; registe-se a sua participação nos livros Povo, Povo, Eu Te Pertenço (Loulé, Câmara Minicipal de Loulé, 2000), de Filipa Faísca de Sousa, obra em que também colaboraram Idália Farinho Custódio e Isabel Cardigos, e É por Aí Voz Constante... E o Povo Sabe Quando Diz. Subsídio para o Estudo da Literatura Oral no Concelho de Loures (Loures, Museu Municipal de Loures / Câmara Municipal de Loures, 2007), de Margarida Moreira da Silva.

O terceiro volume do Património Oral do Concelho de Loulé, consagrado às Orações, vem confirmar os créditos de Maria Aliete Galhoz na área sensível da arrumação, exegese e divulgação dos textos oracionais da tradição oral portuguesa.

Do método empreendido pela investigadora na arrumação de um género para o qual não há, nas suas próprias palavras, “referências de autoridade para a classificação das espécies que o integram”[6], adveio a referência taxionómica que há muito faltava em Portugal

Dir-se-á com mais propriedade referência em Portugal e não só. Maria Aliete Galhoz afirma, sem exagero, que esta colecção de orações «vai contribuir, com a sua riqueza, para o grande “corpus” da tradição pan-hispânica”[7], de que, como também observa a estudiosa, a obra monumental do espanhol Fraile Gil Conjuros y Plegarías de Tradición Oral, editada em 2001, é, para já, com 736 registos, a matriz; e, acrescente-se, esta colecção contribuirá ainda para o conhecimento desse corpus porque é acompanhada de uma minuciosa secção de “Notas e comentários”: para além da indicação de correspondências nacionais e às vezes internacionais para cada tipo de oração, há observações etnográficas e antropológicas que muito contribuem não só para o conhecimento mas também para a dignificação de uma cultura que continua a necessitar de actos de legitimação como os que estas notas configuram[8]:


 

“Orações Quotidianas” (117 versões)

“Acompanhando o Ritual da Missa” (53 versões)

“Orações Penitenciais e da Quaresma” (49 versões)

“Orações da Paixão” (29 versões)

“A Vida de Jesus Cristo” (2 versões)

“Orações de Invocações Várias” (41 versões)

“Encomendações” (24 versões)

“Orações para Dizer Quando Se Sai de Casa” (13 versões)

“Orações e Esconjuros para Afastar as Trovoadas” (45 versões)

“Rogativos para Pedir a Chuva em Tempo de Seca” (3 versões)

“Orações de Protecção” (31 versões)

“Fórmulas de Salve e de Bendição” (17 versões)

“Benditos e Outros Cânticos” (53 versões)

 

Com esta classificação em treze agrupamentos, que assenta ora mais ora menos na função e/ou no tema da oração, o leitor acede prontamente à estruturação da fala ou escrita dos homens sobre e com Deus, Cristo, o Espírito Santo, a Virgem Maria, os anjos e os santos. O produto da acção metódica de Maria Aliete Galhoz é, pela natureza dos textos, a revelação do universo cristão no seu sentido mais puro: o dos crentes comuns.

A arquitectura do quadro delineado remete por si só para uma ideia de oração enquanto linguagem de inquietação e pacificação do espírito que se organiza à volta de rituais diários de intimidade privada, sobretudo, ou de intimidade privada-pública (em contextos cíclicos ditados pelo calendário religioso ou em contextos associados a fenómenos e necessidades não cíclicos): nos actos mais quotidianos (de manhã, ao levantar, ao lavar-se, ao abrir a porta, ao varrer a casa, e à noite, ao deitar), no acto mais estruturador do culto católico (a missa), na evocação e celebração da Paixão e da vida de Cristo, na invocação da Virgem, de santos, de anjos ou do Espírito Santo, nos pedidos para obter uma benção (afastar a trovoada, conseguir chuva ou protecção para a vida em geral), nos agradecimentos pelos alimentos, pelo pão que se confecciona ou pela água que se bebe sem se saber se está contaminada, nas “práticas litúrgicas e devocionais dirigidas” como “procissões, preces colectivas, novenas de irmandades, a recitação quaresmal do terço”[9], o orante é autor da sua salvação: salva-se no milagre que é a oração tradicional como um dos sinais mais puros da ligação do crente ao divino.

 

4. Para uma estética, uma ética e uma pragmática da oração

A oração tradicional, construção de sentido para a vida e para a morte, é percebida pelos cristãos como língua e espaço por excelência de actuação do Deus cristão, que é a instância (a autoria) que primeiro a suscita: a oração existe porque Deus existe. Enquanto palavra interpretada pelo humano, a oração é um meio humilde e sublimado de falar com esse divino, que, no contexto da ocorrência, constitui o receptor privilegiado mas não o único: o intérprete é também destinatário dessa enunciação, pela qual, numa eternidade breve que para muitos utentes-autores é a única verdadeiramente sublime ou salvadora, se encontra consigo e com o divino num recolhimento feliz.

Portanto: este livro diz-nos que a oração tradicional é, para o cristão, consubstancial ao universo; respiração de Deus e do mundo que envolve num pacto de identidade o crente que a actualiza.

O ethos da oração, quer dizer, a reacção que ela desencadeia, a impressão subjectiva reclamada por ela enquanto texto literário, é o produto do acto emancipador dessa palavra de Deus e do sujeito[10], a que a superfície rígida da mundanidade do quotidiano não consegue impor um fim; referimo-nos, evidentemente, a estes informantes e a estas orações, cuja voz, num tempo de aceleração em que aqueles não têm voz e estas por conseguinte tendem a desaparecer com a morte dos seus portadores, é, em grande parte, esta: voz interior, de silêncio, de memória, de imaterialidades que constroem mundos a que até os mais velhos têm direito; voz do absoluto cristão que é celebração do divino na Terra, sentido, por isso, do transcendente, e, acima de tudo, paixão pelo quotidiano em e com Deus.

No nosso tempo de esplendores fáceis e efémeros, a que falta a consistência de uma espiritualidade duradoura e salvadora, não custa dar a estes textos um valor de uso, especialmente junto daqueles que se encontram mais distantes da literatura e da cultura oral e tradicional (as crianças e os jovens): o de promover o diálogo entre o eu e o outro, entre o mundo individual e o universo social, o agora e o passado, o visível e o invisível.

Não se pense que estamos a defender uma catequização delineada a partir de peças deslocadas do imaginário e dos interesses dos mais novos; nem se julgue que pretendemos sugerir o recurso aos métodos da cultura da memorização (situamo-nos aqui no mau sentido da fórmula, obviamente). Que saibamos, não há, nos nossos dias, ou haverá apenas muito pontualmente, espaço para a oração tradicional, o ensalmo e o esconjuro nas aulas de formação religiosa cristã (a chamada catequese, ao banir estas fórmulas dos seus instrumentos de ensino-aprendizagem, concentrando-se apenas nas orações convencionais, perde um eficaz mecanismo de transmissão da essência do cristianismo: que é celebração total do amor, da vida e da fraternidade como resposta contra a vocação do ser humano para a morte, o sofrimento e a violência); e nunca deparámos com uma oração antologiada num manual escolar de Língua Portuguesa, disciplina cujos programas apontam para o estudo de um conjunto textual representativo da literatura de transmissão oral, da adivinha ao provérbio e à quadra popular, do romance tradicional à lenda e ao conto.

Numa altura em que a eterna crise da linguagem literária se agudiza com os assaltos do “pop”, da literatura light ou cor-de-rosa infantil e juvenil, valeria a pena apostar na poesia da oração: com a complexidade e profundidade da linguagem simples, ela é uma ocorrência linguística admirável, com um conteúdo que apazigua e desassossega, a que os mais novos não ficam indiferentes. Uma “oração de protecção” como o divulgadíssimo e interpelante “Padre Nosso Pequenino” é uma mise-en-abîme, atravessada de esperança e agonismo, da vida com Deus e Cristo que o cristão constrói para si mesmo:

 

Padre Nosso Pequenino,

pelo monte vai surgindo,

com as chaves do Paraíso.

Quem lhas deu, quem lhas daria,

foi Santa Madalena e Santa Maria.

Cruz no Monte, cruz na fonte,

nunca o Diabo me encontre

nem de noite nem de dia

nem à hora do meio-dia[11].

 

Poema ditado por uma subjectividade imparável que é ferida aberta do enunciador perante as incertezas da vida e ao mesmo tempo consolo em Deus, o “Padre Nosso Pequenino” seduz porque se instala numa dimensão metafísica expressando-se numa poética que combina estranhamento e reconhecimento; o ideal, preconizado no texto, de vida cristã, simples e regida pela protecção da divindade, tem uma correspondência imediata no ideal do texto enquanto texto: o de uma linguagem despojada mas musical e imageticamente sugestiva própria da poesia oral e tradicional. Este ideal de vida em Deus, esta brevidade e este despojamento funcionam bem em conjunto porquanto, entretecida na narração e no pedido que constituem a fala esteticizada da oração, há uma lição de vida dita por um Deus humanizado: um Deus infantil e puro que portanto se inscreve tanto no imaginário adulto como no dos mais novos.

 

5. Conclusão / exortação

Resta-nos esperar pela publicação do Cancioneiro de Loulé, anunciada por Idália Farinho Custódio na sua “Nota sobre a realização da pesquisa”, e ainda porventura pela edição de volumes de ensalmos e esconjuros, lendas e de provérbios, que por certo surgirão enriquecidos com apêndices aos contos, aos romances e às orações.



[1] Da expressão “recitação sem erros” não se conclua que esta é uma oração imune a uma das principais leis da literatura oral e tradicional: a variação. Isabel Cardigos explica deste modo a relação, muito sensível neste texto, entre persistência e mudança: “No entanto, é o próprio processo de transmissão e sucessivas recitações que vai diversificando as palavras que se queriam imutáveis – uma contradição que está no cerne da riqueza daquilo que é a transmissão oral” (p. 387).

[2] “Nota sobre a realização da pesquisa”, p. 19.

[3] Idem, p. 20.

[4] Idem, p. 19.

[5] Idem, p. 22.

[6] “Prefácio”, p. 16.

[7] Idem, p. 17.

[8] Fundamentemos esta observação com uma parte do que nos diz Maria Aliete Galhoz, que enquadra com rigor antropológico o comentário de uma informante, a propósito da entrada “Quando nos lavamos, pela manhã”: «Sob o ponto de vista religioso, o acto de lavar-se, ao levantar-se, em jejum, tem também o objectivo de uma purificação que envolve o corpo e o espírito. A crença popular transmitia que a ablução matinal, em jejum, ritualizada e acompanhada da recitação de fórmulas de oração próprias, impedia que o “Pecado” (o Demónio, o Diabo) penetrasse o íntimo da pessoa e a atentasse. No volume I deste Património Oral de Loulé, o dos Contos, no conto “O Diabo na Arca de Noé” assim é exemplificado o valor do rito: a sua quebra, ainda que involuntária, da parte de Noé, foi o que permitiu ao Diabo saber da construção da Arca e, pela astúcia, ter conseguido introduzir-se nela. E termina a narradora dizendo: “Portanto, há mal no mundo, por isso. E, portanto, se toda a gente se lavasse em jejum, o Inimigo não sabia o que a gente faz (texto n.º 66, dos Contos, versão de Vale Judeu)» (“Notas e comentários”, pp. 391-392).

[9] Idem, p. 409.

[10] Linda Hutcheon, no artigo “Ironie, Satire, Parodie. Une approche pragmatique de l’ironie” (in Poétique, n.º 46, Paris, Éditions du Seuil, 1981, pp. 140-155), recupera a noção de ethos apresentada pelo Groupe Mµ, na sua célebre Rhétorique Générale, de que aqui nos valemos: “un état affective suscité chez le recépteur par un message particulier et dont la qualité spécifique varie en fonction d’un certain nombre de paramètres. Parmi ceux-ci, une grande place doit être ménagée au destinataire lui-même. La valeur attachée à un texte n’est pas une pure entéléchie, mais une réponse du lecteur ou de l’auditeur. En d’autres termes, ce dernier ne se contente pas de recevoir un donné esthétique intangible, mais réagit à certains stimuli. Et cette réponse est une appréciation” (p. 145).

[11] Orações. Património Oral do Concelho de Loulé, vol. III, p. 271.