Costa, Cátia Miriam. “O outro na narrativa fotográfica de Velloso de Castro: Angola, 1908”. Culturas Populares. Revista Electrónica 7 (julio-diciembre 2008).

http://www.culturaspopulares.org/textos7/articulos/costa1.htm

 

ISSN: 1886-5623

 

 

O outro na narrativa fotográfica de Velloso de Castro:

Angola, 1908[1]

 

Cátia Miriam Costa

Universidade de Évora

 

Resumo

Velloso de Castro, militar de carreira, destacado em Angola, realizou centenas de fotografias da então província portuguesa, recorrendo a técnicas fotográficas bastante elaboradas para a época. Tratamos, aqui, da narrativa fotográfica de três trabalhos seus, dois publicados (um livro e uma colecção de álbuns de postais) e um inédito, que completam este ano o seu primeiro centenário. O interesse etnográfico do autor pelo outro que aparece retratado sob diversas formas nestes conjuntos fotográficos, levou-nos a traçar uma relação entre a sua narrativa e o tratamento do outro nos conteúdos dessa mesma narrativa. Lidando com as expectativas dos leitores metropolitanos, Velloso de Castro consegue construir uma narrativa que, retratando os costumes das populações autóctones, consegue, por vezes, escapar ao exotismo que transparece nos universos captados, mas não os domina.

Palavras-Chave: Campanha militar, fotografia, Angola, narrativa, etnografia, postais, expectativas dos leitores, metrópole, costumes, exotismo.

 

Abstract

Velloso de Castro, a military officer, sent to Angola, made hundreds of photographs of at the time a Portuguese territory, using elaborated photograph techniques in that epoch. Here we analyse the photographical narrative of three of his works, two published (a book and a collection of postcards albums) and one unpublished work that accomplish their first century. The authors’ ethnographical interest for the other that appears pictured under different ways in these photographical groups, has taken us to a relation between his narrative ant the treatment of the other in narrative contents. Dealing with metropolitan readers’ expectations, Velloso de Castro is able to create a narrative that reflecting the autochthonous population practices, is sometimes able to escape to the exoticism that appears in the captivated universes but doesn’t dominate them.

Keywords: Military campaign, photography, Angola, narrative, ethnography, postcards, readers’ expectations, metropolis, practices, exoticism.

 

 


Introdução

E

ste ano dá-se a feliz coincidência de passarem 100 anos sobre a realização de dois álbuns inéditos de fotografia, resultantes do percurso da Coluna Móvel de Polícia em Operações no Libolo, e de se comemorar a mesma efeméride relativamente a duas publicações, uma colecção de álbuns de postais versando sobre Angola e uma denominada A Campanha do Cuamato em 1907. Breve narrativa acompanhada de photographias[2]. Em comum têm o autor, Velloso de Castro, militar português, que deixou tanto em versão publicada como em versão inédita um riquíssimo registo fotográfico da então Província de Angola.

O facto de ser militar fê-lo chegar a locais completamente desconhecidos para a população metropolitana e mesmo para alguns “africanistas”, como se dizia à época, limitados ainda a zonas costeiras[3].  Encontramo-nos na fase das operações de policiamento que se seguiram às duras campanhas militares de conquista do território. Sucedem-se as acções topográficas executadas, nuns casos, e auxiliadas, noutros casos, pelos militares, que levam o europeu em número assinalável e até então impensável para as entranhas do sertão. As imagens recolhidas por Velloso de Castro, apesar de resultarem de um contexto militar, de conquista e de ocupação, revelam uma preocupação com o conhecimento do outro, umas vezes, e com a captação do exótico, noutras vezes, que as tornam numa narrativa prenhe de informação com carácter de novidade para a época e de motivo de pesquisa presentemente.

 

A Fotografia e a visão do outro

Actualmente, a fotografia continua a ser utilizada na descrição etnográfica com o objectivo de apresentar características culturais e sociais que estão em permanente mutação. Neste sentido, a fotografia cristaliza um certo momento num dado espaço, permitindo a criação de conhecimento em torno do facto etnográfico que proporciona a prazo a análise antropológica. A imagem é mais uma das fontes de informação a que podemos recorrer quando estudamos um indivíduo ou uma comunidade, apresentando esta capacidade de captar a realidade tal como ela se apresenta num determinado tempo. Contudo, esta captação da imagem caracteriza-se, também, por ser a visão que uma determinada pessoa tem daquele facto cultural ou social, individual ou colectivo, pois o autor da fotografia é que selecciona o que vai captar. Quando se volta a um testemunho do passado, prestado por uma imagem, temos de ter em conta exactamente este facto: o que ali está representado foi sujeito à interpretação da realidade por parte do autor naquele momento e num dado enquadramento humano.

Desde que surgiu, na década de vinte do século XIX, a fotografia associou-se ao registo de tudo o que era humano, tendo como protagonista principal o ser humano, autor daquele testemunho mas também seu objecto. O desenvolvimento tecnológico do século XIX, a industrialização e a consequente urbanização da população trouxeram uma maior necessidade de visibilidade imediata dos acontecimentos, o que acompanhou o crescimento da imprensa e o facto de esta progressivamente se ter tornado quotidiana. Ao crescimento das cidades juntou-se a internacionalização dos interesses dos Estados ocidentais, nomeadamente, através do domínio de terras ultramarinas, derramadas por outros continentes e, por isso, longínquas, em que até o ser humano era diferente.

A necessidade de estreitar o espaço, que separava a metrópole da colónia, e o tempo, que parecia separar as culturas dos povos que habitavam um e outro local, conduz a um incremento do interesse pela fotografia, enquanto fonte de informação sobre o outro e como reportagem do exótico, completando e dando mais realidade e fidelidade ao relato escrito. Em torno desta contínua procura de mais informação, são, igualmente, tratados os conflitos bélicos. A Guerra da Crimeia (1855) inaugura esta tendência da opinião pública para o acompanhamento do conflito armado, sendo curioso que na narrativa fotográfica desta guerra fossem excluídas todas as referências ao que é característico de um conflito bélico, como os feridos, a devastação, ou outros elementos associados à depredação criada pela guerra. Outro conflito largamento narrado em fotografia é a Guerra de Secessão Americana (1885), desta feita expondo a morte e o sofrimento provocado por esta.

Fotografavam-se os retratos de família, contudo outros temas tornavam-se apetecíveis para uma opinião pública que se ia esclarecendo acerca do mundo que a rodeava. Exploradores geográficos e geológicos, fossem civis ou militares, inúmeras vezes, faziam-se acompanhar de máquinas fotográficas para registar os seus achados e os mostrarem ao seu público, ávido de novos conhecimentos e novas paragens. Contudo, teremos de esperar pelo século XX e só após a primeira década para que se vulgarize na imprensa e nas publicações o recurso à fotografia. É, provavelmente, com conhecimento desta evolução e acompanhando as inovações técnicas da sua época no que concerne à fotografia que Velloso de Castro cria as suas próprias imagens, aproveitando a sua qualidade de militar para captar o que poucos olhos europeus viam ou conheciam.

 

A Narrativa Fotográfica de Velloso de Castro

A narrativa fotográfica criada por Velloso de Castro nos álbuns resultantes da coluna de policiamento no Libolo, inédita tanto quanto conseguimos apurar e cujas fotografias completam este ano um centenário, apresenta características muito específicas se tomarmos em consideração a circunstância em que as fotografias foram realizadas. O interesse etnográfico, tanto pelos elementos indígenas que integram a coluna como pelas populações que vão sendo localizadas, não é muito comum, pois na maior parte das vezes mais do que captar o exótico, este tenente do exército português pretende captar os momentos de lazer, as indústrias locais, o modo como vivem, como comem ou como dormem os indivíduos objecto do seu interesse. Mais do que os observar, imortaliza-os com a sua objectiva.

Se compararmos esta narrativa fotográfica com A Campanha dos Cuamatos Breve narrativa acompanhada de photographias, que também parte da recolha fotográfica do autor, como o próprio refere[4], concluímos que a narrativa inédita é mais profícua em temas etnográficos que a publicada, apesar de sabermos que apenas um pequeno número de fotografias foi reproduzida em publicação, do vasto conjunto que o autor menciona[5], o que não invalida que a colecção no seu total seja igualmente rica. Tendencialmente, também o será, até porque o seu autor afirma logo a abrir esta narrativa publicada: Só muito tarde é que estes povos principiaram a ser conhecidos (...) e as notícias que d’essa gente nos trouxeram os raros viajantes que se aventuravam então em regiões tão afastadas da esphera do nosso domínio, davam a esses povos, de que o Cuanhama era principal tribu, como aguerridos e sanguinários, difficilmente domáveis á influencia da civilisação[6]. Ao longo da narrativa escrita e como é habitual em todo este período, a civilização do outro mede-se pela sua aproximação aos comportamentos europeus, não deixando, no entanto, de transparecer algumas vezes admiração por alguns feitos destas populações ou interesse genuíno pelas suas artes e tradições.

Podemos considerar estes álbuns como uma narrativa fotográfica, pois estes apresentam algumas características de organização e de descrição que nos remetem para uma certa unidade, com princípio, meio e fim, não acompanhando em certas ocasiões a ordem por que foram recolhidas as imagens. Assim sendo, concluímos que a ordem cronológica de captação das fotografias é sacrificada face a uma narração que o autor pretende fazer. Divididas as fotografias por vinte e quatro capítulos no primeiro álbum, na sua maior parte dedicados aos combates travados durante a coluna de policiamento que pretendia a submissão das populações locais, com a assinatura de acordos de vassalagem por parte dos sobas, encontramos no XX capítulo, intitulado Os Libolos na Columna, o registo do quotidiano da população local que acompanha esta campanha militar. No segundo álbum, igualmente, com vinte e quatro capítulos, sucedem-se os temas etnográficos ligados à população autóctone, havendo interesse nas várias actividades desenvolvidas por estas, bem como, pelas suas habitações, organização política, graus de parentesco, etc.

O fio condutor da narrativa é o percurso do seu narrador, Velloso de Castro que nos vai relatando o que vai vendo e encontrando através das imagens, ou seja, o mote sequencial é cronológico e espacial, mas vai sendo contado de acordo com os temas de cada capítulo. De modo a enriquecer a sua narração, baseada na imagem, o autor coloca legendas explicativas para cada uma delas, em que utiliza o verbo, colocando acção naquelas imagens estanques e imutáveis. Podemos encontrar frases como estas: manejam a pá e a enxada; Removem grandes pedras. Esforço supremo; batem e fiam o algodão; fabricam cacimbos e pentes; preparam as suas refeições. E, curiosamente, todas estas frases pertencem ao primeiro álbum em que são descritos os carregadores e demais pessoal auxiliar, isto é, libolos integrados na coluna militar portuguesa.

A reprodução do dia a dia deste povo na coluna permite ao autor obter excelentes testemunhos dos saberes tradicionais transmitidos por aqueles indivíduos e de apresentar alguma admiração pelo seu esforço e capacidade, ao desafiar grandes obstáculos da natureza como o transporte de grandes troncos ou a remoção de pedras e de outros empecilhos no caminho.

 

 

Tarefas ligadas à higiene como a lavagem da roupa

 

 

ou à saúde e às curas tradicionais, em que se destaca o tratamento das doenças por sangrias demoradas também são reportadas.

 

 

Igualmente, as artes e industrias locais são captadas como é o caso da elaboração de esteiras, acompanhada do desfrute de uma actividade de lazer, o tocar e ouvir música.

 

 

Seguem-se, os momentos de convívio que são fotografados, incluindo o do momento da refeição que se faz em grupos de amigos, tal como acontece entre os outros membros da campanha.

 

 

No segundo álbum, as fotografias sobre a população local constituem boa parte da narrativa construída, contudo, perde-se o elemento acção, começando a predominar o factor descritivo, apesar das incursões sobre as actividades desenvolvidas, artes apuradas e relações sociais e políticas destes povos. Aqui, podemos dizer que se introduz algum exotismo, próprio de quando se lida com o desconhecido e se acha o diferente como algo que deve ser enaltecido enquanto tal. Neste álbum, surge como novidade na narrativa fotográfica, que temos vindo a acompanhar, a questão de género que até então não se punha, pois estávamos concentrados nos libolos integrados na campanha. É o contacto com a população civil que leva à descrição dos tipos humanos feminino e masculino, introduzindo novos elementos na história que se conta. Acrescenta-se ainda ao conteúdo da narrativa o facto de existirem, entre a população autóctone, pessoas que são consideradas civilizadas pelos costumes ou vestuário em que se apresentam.

A diversidade de temas para contar aumenta, mas diminui a intensidade com que o autor se entrosa com a própria narrativa. Agora ele é um elemento estranho, exterior, que apenas observa e as legendas ganham maior carácter descritivo: prisioneiros de Cabezo; aspecto de uma das povoações do Ucusso; a banza de Quissala; as cubatas n’esta região; homens da Tamba e Gungo; mulheres da Tamba; rapazes da Tamba; velhos da Tamba e Gungo. A mulher surge como assunto isolado, merecendo o seu retrato em conjunto,

 

 

a incursão nas suas actividades (por exemplo, a sua participação num mercado improvisado) ou a distinção entre indígenas civilizadas e as que ainda viviam conforme aos seus costumes.

 

 

Portanto, de algum modo, há a procura de perceber-se qual a divisão sexual do trabalho, quais as actividades que aqueles povos levavam a cabo para  a sua subsistência.

Também, os assuntos relacionados com o poder tradicional e resultantes da relação entre os poderes locais instituídos e o novo poder colonial surgem, como testemunham as legendas: conselho dos maioraes; à espera de audiência; aspecto geral do logar das audiências; lavra-se o auto de vassalagem do soba de Cadumbo. Outro tema tratado é o da morte através da representação de vários túmulos, o que mostra a preocupação do autor com esta temática, por um lado, e o facto de ter recolhido túmulos leva-nos, por outro lado, a crer que ele considerou esse tratamento dado aos mortos como algo digno de registo, talvez pela aproximação ao comportamento cultural ocidental que também mantinha os seus próprios rituais de dignificação do morto.

 

 

O interesse pelas várias vertentes da cultura local, estende-se ao lazer, mas, neste caso, nem aparece como uma manifestação de exuberância exótica, expressando apenas algum exotismo pela associação das danças ao facto de estas se realizarem durante as recepções oficiais, o que está bem patente no título do capítulo X (segundo álbum) Danças Gentílicas durante as Recepções. Para além de uma nova abordagem à questão de género, separando as danças de mulheres e as danças de homens, também há uma referência aos mestres de dança e à orquestra, bem como, à especificidade das danças feitas em honra dos brancos.

 

 

 

À medida que aumenta  o pendor descritivo da narrativa fotográfica e que o autor se afasta do meio que lhe é comum e das pessoas que o integram – a coluna militar – adensa-se a tendência para o domínio do exótico, isto é, os elementos que se apresentam como diversos daqueles que são habituais na metrópole. Assim, proliferam os retratos de pessoas com características físicas marcantemente africanas e ainda sem um ar que permita admitir-se que já tinham um contacto prévio com a civilização do colonizador, daí que apenas encontremos uma foto de população local com a legenda civilizadas. Esta fotografia, relativamente a um pequeno grupo de mulheres, apresenta como única diferença face ao restante grupo feminino o facto de vestirem roupas com alguma semelhança às europeias (as blusas) mesmo que ainda tendo os panos por cima, o que é um claro indício de sincretismo cultural. Igualmente, as fotografias das edificações locais ganham protagonismo, surgem os celeiros,

 

 

as habitações, os caminhos dentro das povoações, ou seja, os elementos ligados à organização do espaço.

Apesar desse pendor que puxa para o exotismo, não podemos dizer que haja uma impressão negativa sobre os povos ou as suas actividades. Em alguns casos até há admiração pela sua capacidade física, pelo seu esforço, só que a medição é feita a partir da cultura e comportamento metropolitanos, portanto, tudo o resto, aparece como um pouco selvagem ou, no mínimo, estranho e invulgar. Outro aspecto que nos faz pensar que esta narrativa se afasta dos temas puramente exóticos é o interesse do autor ser muito vasto, abarcando a organização do espaço, o poder político, as relações familiares e sociais, a divisão de tarefas e comportamentos pelo género, as actividades económicas, os tempos de lazer, isto é, a comunidade perante a vida e a morte. A vontade de conhecer as populações sobrepõe-se à mera captação do exótico, sendo que, por formação e vivência individual e colectiva, o autor deixe transparecer de que lado está a civilização e os bons costumes, isto é, estes incarnam o que constitui a sua própria cultura.

 

Velloso de Castro: do registo pessoal à narrativa publicada

Os documentos inéditos e publicados, datados de 1908, portanto centenários, deixados por Velloso de Castro, apresentam-se como fontes de informação e conhecimento muito profícuas, sendo que ficam por desvendar algumas questões: Como teria surgido o interesse deste militar pela fotografia? Questão que se coloca com acuidade, visto as fotografias terem bastante qualidade ao tempo em que foram tiradas e terem una revelação cuidada. Qual o interesse deste fotógrafo em captar tanta informação étnica sobre as várias populações, num contexto militar, em que o mais importante é elaborar um discurso laudatório da conquista? Sabemos que mesmo na narrativa, acompanhada de fotografias, que publica sobre a Campanha do Cuamato, o elemento étnico transparece e a procura de explicar o outro também. Dedica o livro sobre a Campanha do Cuamato ao Governador Geral de Angola de então, Henrique Paiva Couceiro, que também aparece referenciado nos álbuns sobre a coluna de policiamento do Libolo...haveria algum interesse expresso pelo Governador Geral sobre as temáticas ligadas ao conhecimento do outro?

Estas questões ainda estão por responder e este trabalho não visava esse objecto de estudo, pretendendo apenas centrar-se na narrativa fotográfica. No entanto, foram interrogações que nos surgiram durante a prossecução da análise das fotografias e que nos parecem constituir um importante trilho a explorar. Esta continuidade torna-se ainda mais necessária quando sabemos que a fotografia retrata uma época, um momento de um indivíduo ou de uma comunidade que, sujeitos às várias dinâmicas sociais que surgem com o passar dos tempos, é irreproduzível no presente. Sendo que muitos dos povos aqui retratados têm na tradição oral a sua principal fonte de construção da memória colectiva, surgem estas imagens como possibilidade de comparação entre registos orais e pictóricos, enriquecendo o material de análise sobre estas populações. Embora aqui também esteja presente o relativismo cultural do autor, no discurso escrito este pode apresentar ainda mais vestígios desse relativismo, visto depender em absoluto da acção do autor, sem que a escrita tenha de corresponder ao real.

Partindo do pressuposto válido que as narrativas criadas têm o cunho do seu autor que escolhe não só o enquadramento na recolha da imagem como aquilo que pretende reproduzir da realidade, dando-nos, desde logo, a sua visão do real, parece-nos que nas narrativas fotográficas produzidas, Velloso de Castro inculcou um registo pessoal no produto final que são os álbuns e a narrativa da Campanha do Cuamato. Se entre as fotografias militares, tanto nos álbuns inéditos como na publicação escrita, o autor ousou tratar a morte, sobretudo o sofrimento infligido ao combatente português e indígena, integrados nas forças militares portuguesas de conquista, ocupação e policiamento de Angola, isto deve-se à sua necessidade de mostrar ao público metropolitano a heroicidade e a dedicação desses soldados, verdadeiros construtores de uma pátria além mar.

 

 

É muito curioso que neste discurso de façanhas militares, sejam introduzidos os quotidianos das populações conquistadas ou mesmo dos africanos que contribuem para o sucesso das operações militares portuguesas, muito elogiados pelo militar português.

Na publicação sobre a Campanha do Cumamato, o discurso é escrito e apesar da narrativa fotográfica não acompanhar a escrita percebe-se que o autor captou todos esses pormenores ligados à sociedade local, sendo a sua descrição muito rica. Abre excepção nessa publicação para uma fotografia de duas pessoas da etnia vencida, no entanto, pelo que escreve tudo nos dá a entender que teria muito mais elementos... mas também é verdade que o autor aguardava a publicação de um álbum com todas as fotografias da campanha e talvez quisesse guardar essas fotos para a futura edição. Quanto aos álbuns do Libolo, a narrativa etnográfica inclui-se na própria jornada militar e no geral a narrativa é entremeada entre feitos militares e contactos com a população civil, seguindo o rumo do espaço e do tempo da campanha militar. Curiosamente, na versão publicada não se cansa de falar do exótico, o que parece diluir-se quando comparado com os álbuns do Libolo que, como vimos, têm o elemento exótico presente, mas nem sempre preponderante.

 

 

Se analisarmos os álbuns de postais publicados, verificamos que aí a narrativa fotográfica sofre nova alteração, centrando-se em imagens que retratam a proximidade entre as populações locais e o colonizador, as celebrações e festas da sociedade colonial

 

 

ou o exotismo da paisagem e das populações. Parece-nos que dois factores podem ter influído no rumo que o autor deu à narrativa fotográfica dos álbuns de postais: saciar a curiosidade e o desejo do exótico por parte do público metropolitano cujas expectativas relativamente às colónias se baseiam sempre na imaginação de lugares longínquos, repletos de perigos; e, enaltecer o regime colonial, através de pequenas amostras do que é possível fazer para que a convivência entre colonizador e colonizados dê os seus frutos.

Daí que se denote a intenção de direccionar as imagens para um público metropolitano, enaltecendo a sociedade colonial e mostrando as paisagens magnânimas, mas estranhas ao europeu, demonstrando que nem tudo é selvagem e incivilizado, mas que contem em si o carácter da novidade, parecendo que tudo está por fazer às mãos do Homem civilizado.

 

 

Aliás, a narrativa publicada, tanto em imagens como em texto aponta para estes vectores, quando olhamos para as fotografias inéditas parece-nos que as preocupações do autor terão ido para além desta promoção do colonialismo, inscrevendo-se, todavia e como é comum nesta época, numa sede de conhecimento do outro, baseada em pressupostos positivistas que apontam para a intervenção do europeu no mundo desorganizado e de trevas em que o africano vive. Só essa intervenção poderia trazer até ao conhecimento e ao usufruto da tecnologia uma parte da população mundial que vivia em estado quase primitivo. Contudo, não deixa de ser um testemunho muito importante sobre os saberes e quotidianos das populações retratadas e de ter um valor documental assinalável. É, igualmente, assinalável o facto de as fotografias se encontrarem em excelentes condições de preservação, podendo ser perfeitamente trabalhadas no presente, a par de outras fontes documentais.

 



[1] As imagens analisadas neste artigo são na sua totalidade pertença do Arquivo Histórico Ultramarino/Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa), foram trabalhadas pela Equipa de Conservação de Fotografia e gentilmente cedidas por esta instituição. Agradecemos a colaboração das senhoras Doutora Ana Cannas, directora do AHU, e da Dra. Laura Domingues, elemento da referida equipa.

[2] Referimo-nos aos seguintes documentos, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino: Reconhecimentos Topographicos exectuados em 1908 pelo tenente J. Velloso de Castro, Primeiro Álbum, Junho e Julho, Calulo, Quissongo (Columna Móvel de Policia em Operações no Libolo); Reconhecimentos Topographicos exectuados em 1908 pelo tenente J. Velloso de Castro, Primeiro Álbum, Agosto e Setembro, Calulo, Quissongo, Cabezo, Qissala, Gungo, Sanga, Quibala (Columna Móvel de Policia em Operações no Libolo);  Velloso de Castro, Província de Angola, Álbum de Aspectos da Vida e Costumes no Interior da Africa Occidental Portugueza, n.º 4 e n.º 10, 1908 [colectâneas de postais]; e a publicação Velloso de Castro, A Campanha do Cuamato em 1907. Breve narrativa acompanhada de photographias, Loanda, Imprensa Nacional, 1908 [um dos originais desta publicação encontra-se na Sociedade de Geografia de Lisboa].

[3] Apenas os sertanejos se aventuravam pelo interior de Angola e existiam zonas do sertão apenas penetradas pelas caravanas comerciais em que o guia era local. Em muitos casos o contributo dos sertanejos foi essencial na fixação da soberania portuguesa, pois funcionaram como conhecedores do território, como informadores dos militares ou como diplomatas junto das populações.

[4] Arthur Ferreira, Director da Imprensa Nacional em Luanda, terá dito “Porque não escreve você, que tão bellas photographias obteve durante as operações um livro sobre essa campanha?” tendo Velloso de Castro admitido: “Sorri agradavelmente impressionado pelas perspectiva que se me deparava de publicar um resumo histórico daquela campanha, largamente illustrado; não tinha porém apontamentos de alguns successos d’aquella epocha, senão os que a memoria me ajudasse a reconstituir”, Velloso de Castro, A Campanha do Cuamato em 1907. Breve narrativa acompanhada de photographias, op. Cit.,, p. 7. Por aqui se infere que as fotografias e a memória do autor foram essenciais na construção da narrativa escrita.

[5] As gravuras que ilustram esta publicação terão sido extraídas de uma colecção de 300 fotografias, tiradas durante a campanha, e que estariam, por acordo com autor com o comandante da campanha destinadas à edição em álbum fotográfico. Vide ibidem, p. 9.

[6] Ibidem, p. 14.