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Nogueira, Carlos. “A lenda de Pedro Sem: da
oralidade à poesia romântica, ao cordel (português e brasileiro) e à
literatura para crianças e jovens”. Culturas Populares. Revista
Electrónica 6 (enero-junio
2008). http://www.culturaspopulares.org/textos6/articulos/nogueira.htm ISSN: 1886-5623 |
A
lenda de Pedro Sem: da oralidade à poesia romântica,
ao
cordel (português e brasileiro) e à literatura para crianças e jovens
Carlos Nogueira
(Centro de Tradições
Populares Portuguesas - Universidade de Lisboa)
A Arnaldo Saraiva,
a João David Pinto Correia,
que me iniciaram nos mundos do
cordel
Resumo
Neste ensaio, abordamos a lenda de Pedro Cem a
partir das diversas versões que conhecemos, orais e escritas, eruditas e
populares, procurando determinar o significado desse diálogo e a estrutura
profunda de cada texto.
Palavras-chave: Lenda, Pedro Cem, intertextualidade.
Abstract
This essay analyses the meaning and structure of
the different versions –oral, written, learned and popular– of the legend of
Pedro Cem.
Keywords: legend, Pedro Cem, intertextuality.
E foi assim que ouvi a história
de Pedro Sem:
Era um agiota muito rico, que
vivia naquela torre, lá ao fundo da rua, com a filha de um senhor que lhe tinha
pedido dinheiro emprestado e, quando não pôde pagar, ele ficou-lhe com a filha
que, coitada, tinha de pagar pela dívida do pai. Tinha o avarento muitos
barcos, que iam à Índia e aos Brasis, e ele ia ao alto da torre para, por um
óculo, os ver chegar à Foz do Douro. E, em certa tarde de sol, viu chegar a sua
frota, carregadinha, e, muito contente, exclamou, enquanto os barcos demandavam
o canal do rio: «– Agora nem Deus!»
Só que, naquele tempo, Deus
ouvia tudo o que se dizia cá em baixo e despencou uma terrível tempestade que
fez naufragar todos os barcos, ao mesmo tempo que um raio veio incendiar o
recheio da torre, só dando tempo a que a jovem fugisse para casa de seus pais;
e o avaro mai-los
criados vieram para a rua tentar debelar o incêndio, o que não conseguiram. Só
ficaram com as roupas no corpo. Dinheiro, papéis de dívida, de crédito, jóias,
enfim, nada ficou para testemunhar o prestígio de outrora e o velho, sem nunca
ter dado nada a ninguém, olhava para as paredes da torre e via-se obrigado a
esmolar, dizendo: «Dai alguma coisa ao Pedro Sem, que teve muito e agora não
tem!» Júlio Couto, «Isto do Pedro
Sem...», in Nuno Pignatelli, Lenda de Pedro Cem, Porto, Campo das Letras, 2007.
1.
E |
m 1897, o erudito portuense Francisco Marques de
Sousa Viterbo, num opúsculo de seis páginas, afirma: «O Pedro Sem constitui uma
lenda que, sendo das que actualmente estão mais em voga em Portugal, é todavia
das que se acham menos estudadas debaixo do ponto de vista tradicional e folclórico»
(Viterbo, 1897: 1)[1]. A esta
asserção, que, passados cento e onze anos, se mantém verdadeira em praticamente
toda a sua amplitude, apesar do que nos diz Sousa Viterbo, acrescentamos apenas
que também a crítica literária não dedicou ainda – que saibamos – qualquer
atenção à lenda de Pedro Sem. O propósito deste ensaio não é portanto o de
fixar a origem da lenda, a época do seu aparecimento e difusão ou os elementos
históricos e sociais que eventualmente a estruturam, mas o de propor uma
leitura das formas e dos sentidos que justificam a sua permanência na memória
cultural e literária de inúmeras gerações de portugueses (de, pelo menos,
meados do século XIX até aos nossos dias) e a sua adaptabilidade a diversos
registos e géneros (oralidade, poesia romântica, literatura de cordel
portuguesa e brasileira, literatura para a infância e a juventude). Na
metodologia de análise cruzaremos por isso diversas linhas: de relacionação
arquitextual, procurando compreender o diálogo que cada texto estabelece com um
modelo teórico de discurso ou género, e principalmente intertextual, examinando
as relações, implícitas ou explícitas, que cada versão institui com um
paradigma hipotextual ou com vários paradigmas, uma vez que um determinado
hipertexto pode dialogar com vários hipotextos (um oral e outro escrito, por
exemplo). Na abordagem, cronológica ou temática e estrutural, dos contactos
estabelecidos a este nível entre um texto e outro(s) texto(s), consideraremos
mecanismos da intertextualidade como a negação, a expansão, a supressão e a
repetição. Em última instância, para além de um trabalho de semiótica textual
do cordel, talvez possamos encarar ainda este estudo como um contributo para a
sociologia da literatura de cordel e a história das mentalidades.
2.
Antes de avançarmos, convém esclarecer que as obras de Luís António Burgain, Pedro
Sem Que Já Teve e Agora Não Tem: Drama Fundado em Factos (1847), e de
Inácio Maria Feijó, Pedro Cem: Drama em Cinco Actos (1861), não
serão, para já, objecto da nossa atenção, porque não se trata de textos
popularizantes nem de cordel (não será de mais repetir que a expressão literatura
de cordel não é necessariamente sinónima ou próxima da expressão literatura
popular: o qualificativo «de cordel» remete para um universo editorial que
incorpora espécies textuais muito distintas, situáveis no popular mas também no
culto, de qualidade ou não, independentemente da categoria em que se integrem.
O que aproxima estes objectos é, não a sua natureza popular, mas a modéstia dos
materiais, o modo e os circuitos de divulgação e não raro a ausência da noção
de propriedade literária ou intelectual, substituída pelo conceito de
propriedade material e comercial. Deve pois assumir-se que, assim como o cordel
popular não é obrigatoriamente pobre ou desqualificado, também o cordel
culto não é sempre categorizado).
3. Em 1848, em pleno
nacionalismo estético introduzido em Portugal por Almeida Garrett, o poeta
Joaquim da Costa Cascais publica, na Revista Universal Lisbonense, a versão escrita mais antiga que
conhecemos da lenda de Pedro Sem (composta em Lisboa, em Dezembro de 1847,
segundo indicação fornecida imediatamente a seguir ao texto): «Quereis ouvi-lo,
singelo,/ O falar do coração?/ Abri o livro do povo,/ O livro da tradição.//
Que de sublimes preceitos!/ Que traslados – que moral.../ Por moral – quero
contar-vos,/ (Não mo levareis a mal).// Quero contar-vos um conto,/ (Que não
perde por antigo)/ Dum soberbo, mui soberbo,/ E do seu grande castigo» (1894:
72)[2].
Neste poema narrativo romântico, constituído por trinta e nove quadras
heptassilábicas e um dístico final («– Quem dá esmola a Pedro Sem/ Que já teve,
hoje não tem» (1894: 79)), não
se versifica apenas uma lenda que merece ser recontada porque o seu conteúdo
moral é elevado; presta-se ao mesmo tempo tributo, numa declaração de optimismo
nacionalista e antropológico à maneira de Almeida Garrett, às manifestações
folclóricas, à visão do mundo e à sensibilidade do povo. À luz dos critérios
artísticos e etnográficos correntes na época, esta composição é genuína a
vários níveis: funda-se num texto transmitido e conservado oralmente que é
reescrito por quem aprendeu a ser poeta com o povo, aderindo naturalmente ao
seu imaginário e às suas formas literárias ágeis e cantáveis. As palavras de
Garrett na carta-prefácio de Adosinda, redigida em Londres no dia 14 de Agosto de 1828,
não terão sido por certo
alheias à desejada sublimidade da estética e da ética deste Pedro Sem (palavras, provavelmente, com uma
correspondência directa nas vivências do próprio autor): «De pequeno me lembra
que tinha um prazer extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos
reuníamos nós, os pequenos todos da casa, nas longas noites de inverno,
recitar-nos meias cantadas, meias rezadas, estas xácaras e romances populares de
maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e esforçados
cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um não sei quê de
sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia tão profunda impressão e me
enlevava os sentidos em tal estado de suavidade melancólica, que ainda hoje me
lembram como presentes aquelas horas de gozo inocente (...)» (1963: 52).
A antiguidade do «conto»,
assinalada parenteticamente no segundo verso, não é substancialmente traída
pelo discurso, que, no essencial, conserva o estilo fluído e transparente
próprio da poética do oral e do popular; um estilo, em certa medida, pelo menos
para alguns leitores, inesperado, devido à expectativa criada pela sintaxe
interrogativa e exclamativa das duas estrofes de apresentação, sobrecarregadas
por uma adesão exaltante ao «livro do povo». Mas esta adequação estilística não
implica o apagamento da voz, interventiva e dialogal, que recupera um monumento
da tradição, uma história exemplar de crimes, pecados, punição e arrependimento,
a que deverá ser dada uma expressão estética regida pelos princípios da moderna
poesia romântica. Desta convivência entre o autoral, interessado no
aperfeiçoamento de um texto original inscrito numa oralidade e numa memória
comunal que, em grande parte, como salienta Garrett[3],
não podem senão mantê-lo imperfeito e grosseiro, e o anónimo, de onde lhe advém
a singeleza e autenticidade, resulta um poema que oscila assimetricamente entre
um estilo artificioso e retórico e um estilo corrente e natural: «– Houve
noutro tempo um homem/ Podre de rico – um judeu:/ – Em virtude era ele pobre;/
Não tinha nada de seu.// Tinha palácios e quintas,/ Muitos navios no mar,/
Enfim, tudo que deseja/ O que muito desejar.// Cuidais, talvez, que vivia/
Contente, sem ambição?/ Qual! – Quem mais tem mais deseja/ Bem diz o velho
rifão» (Cascais, 1894: 72). Neste sincretismo avulta sobretudo a impressão de
oralidade; uma oralidade de sentido pessoal e epocal, entretecida de andamentos
tipicamente populares e tradicionais e, em menor número, de sequências cuja
imagética, fraseologia e prosódia se encontram de acordo com a poética
tradicionalizante do Romantismo: «Os barcos vinham seguidos,/ Que era o vento
de feição,/ O mar estava de leite,/ Formoso o céu, sem senão.// E já os navios
chegavam/ A porto de salvamento,/ Quando o soberbo soltara/ Estas palavras ao
vento...» (idem: 75); ou
«Da que altivo rejeitara,/ Senhoril, formosa mão;/ Hoje, súplice recebe,/ Por
esmola! – um meio pão!// [...]// Pompa vã, de ímpia soberba,/ Vê-la por terra
abatida!/ Eis, meus filhos, o que valem/ As soberbas desta vida» (idem: 78).
Dentro da intenção de atribuir
um sentido religioso à vida e da convicção de uma dependência em relação a um
Deus todo-poderoso e providente, esta história é um mito: uma história viva,
real porque verosímil e autorizada pela religiosidade tradicional, que implica
uma reordenação do caos. O leitor ou o ouvinte são, através do relato,
contemporâneos da divindade, pela qual vivem um «“tempo forte”», «um Tempo
prodigioso, «sagrado», em que algo de novo, de forte e de significativo se manifestou plenamente» (Eliade, 2004: 22.
Sublinhados no original): «Ao vento não: porque Deus/ Que as ouvira,
castigou-as./ – Agora, Deus que é Deus,/ Que manda nas cousas boas,// Nas
más, e em todas do mundo/ Não pudera, que quisesse,/ Mandar na minha riqueza;/
Torná-la já em pobreza!//
Inda mal não acabara/ Uma tão grande heresia,/ Olha para os seus navios.../
Onde estão? – ninguém os via!// O céu azul era negro:/ Bramia o mar espantoso;/
Tufões de vento sopravam;/ – Era um quadro pavoroso!» (Cascais, 1894: 75-76. Sublinhados no original). As funções
nucleares finais desta lenda – punição, arrependimento, irredutibilidade do
castigo – confirmam-se nesta versão, que assim exprime, exalta e codifica a certeza
num providencialismo que salva os justos e pune os pecadores: «Hoje, a muitos,
que, soberbo,/ Pouco via, e não saudava;/ Vê, saúda, fala e pede/ Esmola, que
nunca dava!/ Hoje, passa fome e frio,/ Horas, que são de agonia;/ Hoje sabe o
que é ser pobre/ Quem ser rico não sabia!» (idem: 78). A economia desta composição – veja-se, num
confronto com as versões de cordel que estudaremos a seguir, a elipse que actua
na narração da queda do palácio de Pedro Sem: «Afundaram-se as riquezas,/ Fez
um rijo pé de vento,/ Deu em Pedro, e derribou-o/ De seu poderoso assento» (idem: 77) – não impede o processamento de
algumas amplificações que não encontramos nas outras versões; referimo-nos ao
discurso herético da personagem (transcrito acima), um pouco desenvolvido para
intensificar a gravidade do desafio a Deus, e à problematização com que se
encerra a história, em convergência com a disposição do sujeito romântico para
o pensamento irreprimível e dialéctico, emocionado e inquiridor: «– Davam-lhe
muitas esmolas;/ E Pedro, quando pedia,/ Esquecer nunca deixava/ Que tivera
nalgum dia.// E, ou fosse inda soberba,/ Ou fossem saudades só:/ Ou que,
lembrasse o que fora,/ Pra terem dele mais dó;// (Que, na verdade, ter tido/ É
pior que nunca ter;)/ É certo que não pedia/ Senão por este dizer:// Quem dá
esmola a Pedro Sem/ Que já teve, hoje não tem» (idem: 78-79). Verifica-se ainda a adição de um elemento diegético
(exclusivo desta versão): a sorte do marinheiros, que reflecte a vocação
romântica para o humanitarismo e a solidariedade em relação aos inocentes:
«Maior luta nunca viram/ Os olhos que muito vissem: – Misericórdia! Clamaram;/
Que da terra lhe acudissem,// Os marinheiros: – coitados!/ Todos eles se
salvaram./ E que culpa tinham eles?/ Os navios naufragaram» (idem: 76).
4. Vida e História de
Pedro-Sem (Que Muito Já Teve e Agora Nada Tem), de Rafael Augusto de Sousa, é o folheto de cordel
mais antigo que conhecemos consagrado à lenda de Pedro Sem. A edição mais
antiga referida no catálogo da Biblioteca Nacional, a 5.ª, é de 1887; a 6.ª e a
7.ª, que também consultámos, são, respectivamente, de 1894 e 1898. Em nenhuma
outra biblioteca ou arquivo em que pudemos até ao momento pesquisar encontrámos
uma edição mais antiga, o que quer dizer que não sabemos se a 1.ª edição será
muito anterior à 5.ª; como também não conseguimos quaisquer dados biográficos
sobre Rafael Augusto de Sousa, esta questão ficará, por agora, por esclarecer.
Contudo, há uma informação bibliográfica que nos deve servir de referência: A
Vida de José do Telhado,
porventura a obra mais conhecida deste escritor, sai, no Porto, em 1874, em 2.ª
ed.). Em 1905, no Porto, na Livraria Portuguesa – Editora de Joaquim Maria da
Costa, sai outra edição, a última de que temos conhecimento. Este folheto de 16
páginas – com 20 cm por 13 cm, que apresenta na capa, de papel fino
cor-de-laranja, uma imagem do autor e, ao longo das cinco primeiras páginas,
xilogravuras (Pedro-Sem e navios de diversos tamanhos) e, de novo, numa
reprodução da capa, a imagem do autor – que é pelo menos a 8.ª edição, integra,
como n.º 17, a célebre «Biblioteca de Leituras Populares», de que fazem parte
«Histórias e contos populares por Agostinho Veloso da Silva» como, por exemplo,
a Verdadeira História de João Brandão e a História da Vida de José do Telhado,
confissão completa e sincera dos seus crimes, conforme os narra nas «Memórias
do Cárcere» o grande romancista português Camilo Castelo Branco.
Organizada
em nove capítulos com intertítulos, a Vida e História de Pedro-Sem é, a não ser que existam um ou mais textos
anteriores que venham alterar os dados de que dispomos, a fonte principal ou
única do folheto anónimo, que analisaremos mais à frente, História e Vida de
Pedro-Sem (em Prosa e Verso),
editado no Porto na última década do século XIX, ou, o que é mais provável,
durante o século XX, numa data que não pudemos determinar. Referimos desde já,
a propósito desta História e Vida de Pedro-Sem, que a edição existente na Biblioteca Nacional e
nas outras bibliotecas em que realizámos pesquisas é a 3.ª, de que, aliás,
comprámos um exemplar directamente num estabelecimento sucedâneo do Bazar
Feniano, na Rua Mouzinho da Silveira, em 1996, escassas semanas ou meses antes
do seu encerramento. A primeira edição poderá remontar a 1891, data do texto
mais antigo de que temos notícia editado pelo Bazar Feniano (Transmontano,
1891), mas, tendo em conta que Sousa Viterbo não o refere no seu O Pedro Cem de 1897, importa colocar desde logo
reservas a esta possibilidade; é mais aceitável que tenha sido editado na década
de 30, uma vez que por esta altura saem várias edições de títulos referidos na
contracapa do folheto; ou pelo menos já perto de 1940, na medida em que, em
1936 e 1939, vários folhetos do catálogo contam já com uma dezena ou mais de
edições[4]
(e é portanto de presumir que o mesmo aconteceria com a História e Vida de
Pedro-Sem, se a data da
edição tivesse coincidido mais ou menos com a de outras histórias). Seja como
for, esta 3.ª edição, registada no recente catálogo de Arnaldo Saraiva (2006),
é sem dúvida posterior à Convenção Ortográfica de 1943, porque a sua ortografia
é já a que se usa nos nossos dias.
A Vida e História de
Pedro-Sem ostenta desde o
início uma perspectiva científica e crítica na reconstrução de um episódio
associado ao Porto: «Antigamente a guarnição da cidade do Porto era uns
pequenos destacamentos, chamados partidas volantes, que se demoravam na cidade
conforme o serviço» (1905: 5). Através do encadeamento de elementos históricos
e geográficos ligados ao espaço em que a acção começa, estabelece-se um
compromisso rigoroso com a verdade; o objectivo é, certamente, autenticar o
relato, apresentá-lo como uma ficção histórica construída dentro dos critérios
românticos, não como mero devaneio de um escritor desprovido dos sentidos da
tradição e da pátria, da memória histórico-cultural e da ética: «Em 1696 foi
mandado organizar um terço militar, pago pela junta do comércio geral do Porto,
o qual anos depois se denominou regimento do Porto. Com o decorrer do tempo
dividiu-se em dois, ficando a chamar-se n.º 1 e n.º 2, os quais, passados
alguns anos, tomaram os n.os 6 e 18. O quartel deste último era nos
celeiros da Cordoaria, que foram demolidos para aí se construir a praça do
peixe; e só em 20 de Fevereiro de 1790 é que foi mandado para o Quartel de
Santo Ovídio, onde hoje se acha. Numa das tempestuosas noite de Novembro,
próximo do antigo quartel do 18, estava um homem que, pelo trajo já meio
esfarrapado, parecia um mendigo» (ibidem).
A eloquência empoladamente
romântica e ultra-romântica deste folheto, que constitui uma espécie de tratado
teológico em que o sentimento e a emoção são conaturais à fé, o desenho das
personagens e a sequência previsível de acontecimentos instauram crises no
leitor, ao mesmo tempo horrorizado perante a dor dos inocentes e indignado pela
crueza de Pedro Sem, que encarna a perversidade do humano e as contradições da
sociedade. O mercador, nos actos praticados até à extinção da sua fortuna, não
revela senão perfídia e maquiavelismo: recusa arrogantemente ajuda básica (pão)
ao honesto José e à sua família e agride-o verbal e fisicamente; assassina João
Gonçalves, pai de Maria, uma jovem seduzida por si que engravida e quase é
amaldiçoada pelo pai, que, pacificado pelo padre que os salvou da morte pela
fome, reconhece o erro e acaba por perdoá-la antes de morrer; repudia a sua
filha, cujo nascimento lhe é anunciado por Maria numa carta; casa imediatamente
sem amor e, à saída da igreja, despreza mais uma vez Maria e o padre que a
acompanha, que se encarrega de informar os presentes do sucedido e de prever o
fim próximo da riqueza de Pedro Sem; no momento em que os seus navios chegam da
Índia carregados de bens valiosos, desafia Deus, dizendo que nem Ele o poderia
tornar pobre, e pouco depois perde tudo, incluindo a sua infeliz esposa, que
sofria com «os poucos carinhosos tratos do esposo» (1905: 13), numa tempestade
fulminante. A solução, mais ou menos adivinhada desde o início mas nem por isso
menos esperada, inclui o castigo (a pobreza e a morte) e também o
arrependimento da personagem, que beneficia da caridade de Maria, com quem casa
antes de morrer, e da filha até aí ilegítima e desprezada: «– Minha filha,
minha filha! Exclamou Pedro-Sem delirante. O Céu te abençoe. Morro feliz;
abençoado sejas, padre, que me suavizaste o morrer!» (1905: 16). Em nenhuma
outra versão se verifica este desfecho tão favorável a Pedro Sem, redimido por
uma vontade autoral, convergente com o cristianismo mais oficial, de
desenvolver a perfectibilidade humana em harmonia com os ensinamentos mais genuinamente
cristãos. O arrependimento da personagem, que é apenas sugerido ambiguamente no
poema narrativo de Joaquim da Costa Cascais («– Isto são pecados meus» (1894:
77)), pontifica também, como veremos, embora sem o tratamento amplo que lhe dá
Rafael Augusto de Sousa, no cordel de Leandro Gomes de Barros, como modo de
veicular um optimismo escatológico que se apresenta como sublimação
providencial para os pecados e problemas humanos.
À tensão do leitor correspondem
portanto funções e sequências ditadas pelo horizonte de expectativas da
comunidade leitora do cordel; mas também são privilegiadas, nesta narrativa de
tema e sucessos tão sensíveis para a psicologia individual e colectiva,
soluções que se situam, conforme a ideologia confessada ou secreta dos
leitores, aquém ou além dos códigos do realismo cristão ou do cristianismo mais
ortodoxo. O que repugnará a uns, como é óbvio, agradará a outros; e todos se
situam num universo em que há afinal pelo menos um convite velado à emissão de
um ponto de vista pessoal.
5. O folheto de cordel
brasileiro A Vida de Pedro Cem, atribuído a Leandro Gomes de Barros[5],
cuja data ninguém pôde ainda determinar mas que terá sido escrito em finais do
século XIX ou princípios do século XX (o autor viveu entre 1865 e 1918)[6],
instala o leitor, à boa maneira da tradição cordelística brasileira, numa
situação de prazer espiritual que é também físico e fisiológico. O narrador,
que começa por atestar a veracidade do evento narrado e a historicidade da
personagem, enuncia setenta e nove sextilhas heptassilábicas cujo poder de
sedução deriva da sua configuração de fala dramatizada: «Vou narrar agora um
fato/ que há cinco séculos se deu/ de um grande capitalista/ do continente
europeu/ fortuna como aquela/ ainda não apareceu.// Pedro Cem era o mais rico/
que nasceu em Portugal/ sua fama enchia o mundo/ seu nome andava em geral/ não
casou-se com rainha/ por não ter sangue real» (Barros, 2004: 1). A estrutura de
cada estrofe permite criar um efeito de naturalidade estética que transporta o
leitor para o interior do texto e da história. A articulação de unidades
semânticas organizadas em seis versos origina um circuito que se renova em
andamentos cuja transparência estética e comunicativa sugere que a palavra diz
e organiza o mundo (no princípio era o verbo). A assimilação original da lenda enquanto texto
sancionado pela escrita («Diz a história onde li/ o todo desse passado/ que
Pedro Cem nunca deu/ uma esmola a um desgraçado/ não olhava para um pobre/ nem
falava com criado» (idem:
2)) dá-se nesse circuito instaurado pelos valores estético e ético da palavra.
Ouvir(-ler)-escrever-viver cruzam-se e contaminam-se nesse jogo de ductilidade
e variação prosódica que é, antes de mais, uma questão de medida exacta. As
três estrofes em que se apresenta a fortuna de Pedro Cem são um momento
particularmente apelativo de inventividade imagística e fónico-rítmica,
pertinência lexical e coesão semântica: «Em cada rua ele tinha/ cem casas para
alugar/ tinha cem botes no porto/ e cem navios no mar/ cem lanchas e cem
barcaças/ tudo isso a navegar.// Tinha cem fábricas de vinho/ e cem
alfaiatarias/ cem depósitos de fazenda/ cem moinhos, cem padarias/ e tinha
dentro do mar/ cem currais de pescarias.// Em cada país do mundo/ possuía cem
sobrados/ em cada banco ele tinha/ cem contos depositados/ ocupavam
mensalmente/ dezasseis mil
empregados» (ibidem).
Nesta versão de autor não se
explora, na sintagmática narrativa, o motivema do casamento, que é condensado
em apenas dois versos; mas neles sugere-se que uma união conjugal não vale para
Pedro Cem mais do que um qualquer negócio. A extensão de outros motivemas
fundamentais da lenda não difere significativamente nas várias versões, orais e
escritas (à excepção do que acontece no texto de Inácio Nuno Pignatelli, que, por
ser o mais breve, distribui homogeneamente os motivemas em sequências
narrativas com uma amplitude semelhante): a riqueza, a avareza e a maldade de
Pedro Cem, insensível e autoritário até perante a fome extrema de uma moça que
se ajoelha a seus pés: «Ele torceu para um lado/ e disse: – Minha senhora,/
olhe a sua posição/ e veja o que fez agora./ Reconheça o seu lugar,/ levante-se
e vá embora» (idem: 3).
O motivema do castigo recebe uma solução em grande parte distinta da observada
nas outras versões, à excepção do que acontece no cordel de Rafael Augusto de
Sousa, em que tal solução aparece aliás intensificada. Isto é: sem se
prescindir do castigo exemplar, marca-se bem o motivo do arrependimento,
acompanhado do perdão de Margarida (sinédoque do Deus cristão): «– Senhora, se
vós soubesse/ quem é este desgraçado,/ não abriria a porta/ nem me dava esse
bocado.../ Respondeu ela: – O conheço,/ porém esqueço o passado» (idem: 18). O hipotexto bíblico subjacente a esta
narrativa, que se configura como parábola, enquadra a disposição da personagem
para o discurso reflexivo, autopedagógico, para a entificação de si e dos
leitores: «Não desespero, pois sei/ que grande crime expio/ nasci em berço
dourado/ dormi no colchão macio/ hoje morro como os brutos,/ neste chão sujo e
frio...» (idem: 21). O
sonho que anuncia, em mise-en-abîme, a decadência de Pedro Cem («E metendo a mão no
bolso/ tirou dele uma mochila/ dizendo: – É essa a fortuna/ que tu hás-de
possuí-la/ farás dela profissão/ pedindo de vila em vila» (idem: 6)), e o sonho que a confirma, também numa
projecção em escala reduzida («Mostrou-lhe mais quatro quadros/ que Pedro Cem
conheceu,/ tinha a Marquesa de Évora/ quando a bolsa a pobre deu,/ que estirou
a mão dizendo: – Toma o dinheiro que é teu!» (idem: 16)), são signos estruturais e ideológicos da
tradição bíblica em que o texto se insere, e procedimentos literários e
narrativos que apenas Leandro Gomes de Barros e, como se verá já a seguir,
outro cordelista brasileiro introduzem nas suas versões da lenda.
6. A primeira estrofe de A
Vida de Pedro Cem, de
Apolônio Alves dos Santos, que conhecemos na primeira edição, 1981, situa o
universo textual que se anuncia na primeira estrofe numa tradição mas nada diz
sobre as linhas intertextuais que nele hão-de cruzar-se e organizar-se: «Vou
contar para os leitores/ a vida de Pedro Cem/ que foi rico e ficou pobre/ e
dizia com desdém/ quem quiser me dê esmola/ mas eu não rogo a ninguém» (1981:
1). Mas a leitura ou a audição desta composição acaba por suscitar em quem lê ou
ouve, especialista ou consumidor, alguma dúvida e estranheza no que respeita às
influências ou às vozes que nela se ouvem implícita e explicitamente: as
semelhanças entre as duas versões são de tal ordem – até estruturalmente (79
sextilhas) – que não é ilegítimo pelo menos supor-se o texto de Apolônio como
sobretudo uma paráfrase e até não raro uma repetição do de Leandro; conjectura
que mesmo uma comparação apressada não deixará de confirmar. Na segunda
estrofe, o paralelismo estabelece-se apenas nos dois primeiros versos; no
primeiro repete-se literalmente o de Leandro e no segundo invertem-se a forma
verbal e o complemento circunstancial de lugar): «Pedro Cem era o mais rico/
que em Portugal nasceu/ sua fama de riqueza/ no mundo se estendeu/ dizia não há
no mundo/ um rico mais do que eu» (ibidem). Nas estrofes seguintes, acentuam-se os
procedimentos técnico-compositivos e estilísticos esboçados naqueles doze
versos. Isto é: o poema constrói-se a partir de uma confluência entre
enunciados que repetem os de Leandro, outros que os transformam
parafrasticamente de modo mais ou menos visível e algumas expressões ou versos
novos (mas sempre de acordo com a linguagem natural do género): «Pra ser rico
igual a ele/ ali não tinha ninguém/ possuía cem usinas/ cem prédios, cem
“armazém”/ por isso apelidaram/ a ele de PEDRO CEM.// Possuía cem fazendas/ e
cem navios no mar/ cem engenhos, cem escravos/ todos a lhe trabalhar/ e possuía
cem casas/ na rua para alugar.// Possuía cem farmácias/ cem fábricas, cem
padarias/ e cem depósitos de vinhos/ e cem alfaitarias/ cem botes e cem
barcaças/ e cem currais de pescarias.// Em cada banco ele tinha/ cem contos
depositados/ em cada país do mundo/ possuía cem sobrados/ eram cem contos
mensais/ que davam de resultados» (idem: 1-2). Se, permita-se-nos esta opção metodológica,
assumirmos o texto de Leandro como uma versão de um arquétipo ou como o arquétipo, este poema será por conseguinte
uma versão desse modelo a que a comunidade consentiu o processo de
popularização, anonimização e por fim o estádio de tradicionalidade; uma versão
cujo sistema de variantes lexicais e parafrásticas não altera «o sentido do
texto, visto que são do campo da sinonímia ou da equivalência semântica»
(Nascimento, 2005-2006: 168).
A Vida de Pedro Cem de Apolônio Alves dos Santos é, neste plano
teórico, uma versão que mantém do modelo tanto a história (a fábula) como o
discurso e a intriga. A composição de Apolônio é, numa fórmula simples, uma
transposição muitas vezes verso a verso, estrofe a estrofe e sempre sequência a
sequência da narrativa versificada de Leandro (a coincidência entre as
sequências diegéticas começa logo com o sonho e com o encontro entre Pedro Cem
e a moça pobre: «Com esse sonho que teve/ ele acordou assustado/ que rapaz
seria aquele/ que tinha lhe avisado?/ Depois pensava, foi sonho/ nunca dará
resultado.// Certo dia ele saiu/ andando pela cidade/ encontrou uma senhora/
que fazia piedade/ que ajoelhou aos seus pés/ lhe implorando caridade.// Ela
disse tenha dó/ desta pobre desvalida/ veja que estou com fome/ sem lar, e sem
ter guarida/ sem alimento e sem roupa/ andando quase despida» (Santos, 1981:
2-3)). A preservação da unidade da intriga implica que a dependência se estenda
a opções como a repetição dos enunciados em que é nomeada a riqueza do
capitalista, já não no discurso do narrador mas pela voz do próprio Pedro Cem.
Esta repetição liga-se à expansão dos motivemas do desafio a Deus e da perda
dos bens, os quais aparecem reduzidos ao essencial nos cordéis portugueses
(que, em vez disso, contemplam na intriga personagens que sofrem com os actos
de Pedro Cem, responsável pela morte da sua esposa e, como assassino, do pai de
uma jovem). À fala «– Oh! Agora ainda que Deus quisesse, já não podia ser
pobre» de Pedro Cem, no cordel de Rafael Augusto de Sousa, correspondem, nos
folhetos de Leandro e Apolônio, quatro sextilhas e meia («Porque em fazendo
isto/ estou bancando fraqueza/ não vou confiar em sonho/ que sonho não é
certeza/ e Deus jamais poderá/ acabar minha riqueza.// Pois tenho cem parreirais/
de uvas, a safrejar/ e cem fábricas de tecidos/ e cem navios no mar/ não vejo
poder que faça/ a eles se afundar.// As cem alfaiatarias/ cem engenhos e cem
fazendas/ as cem casas alugadas/ e outras cem de encomendas/ e cem fábricas de
tecidos/ todas me dão boas rendas.// Em cada Banco eu tenho/ cem contos
depositados/ em cada país possuo/ cem prédios bem arrendados/ portanto nem Deus
não pode/ fazer meus bens liquidados» (idem: 6-7)); e os seis curtos parágrafos, no cordel
português História e Vida de Pedro-Sem (em Prosa e Verso), em que se narra a destruição dos bens do
mercador (como: «Subiu ao terraço e soltou um rugido de dor! As caravelas sem
velame e desmanteladas vogavam ao sabor das ondas e uma a uma se submergiam a
entrar na barra»; e «O fogo irrompeu dos quatro cantos do palácio de Pedro-Sem
que duas horas depois ficara reduzido a cinzas» (s.d.: 11)), equivalem a
dezoito estrofes nas versões brasileiras (por exemplo: «Era um marinheiro
velho/ que veio lhe avisar/ lhe disse senhor marquês/ os seus navios no mar/ ontem afundaram dez/ só eu
que pude escapar.// [...]// Estavam ali comentando/ nisto veio outro criado/ e
disse a ele patrão/ incendiaram o cercado/ e dentro das grandes chamas/
morreram todo o seu gado// [...]// Chegou outro mensageiro/ outra notícia
trazia/ disse: nos mares do Norte/ surgiu a pirataria/ noventa navios vossos/
tomaram em um só dia.// Mais de 200 piratas/ entraram todos armados/ e vendo
que os navios/ vinham todos carregados/ mataram os tripulantes/ outros morreram
afogados» (Santos, 1981: 7-8)).
No final, o enunciador solicita
a condescendência do leitor e revela de imediato aquilo que suspeitam todos os
que leram ou ouviram a história homónima de Leandro Gomes de Barros (a
existência de um texto-fonte): «Aqui agora concluí/ a minha história rimada/
leitores não me censurem/ vejam que não foi criada/ este livro eu tenho em
prosa/ sua história foi versada» (idem: 16). Todavia, engana-se quem pensa no nome de
Leandro Gomes de Barros no trânsito entre o quarto e o quinto versos. Ao
afirmar «este livro eu tenho em prosa», o enunciador nega esquivamente essa
suposição e coloca-nos perante a ideia de uma fonte que, a existir, é por certo
a mesma a que se alude na narrativa em verso de Leandro: «Diz a história onde
li/ o todo desse passado». Não sabemos, para já, a que livro se reportam estas
versões e colocam-se-nos aliás sérias dúvidas em relação à leitura desse livro
por parte de Apolônio, que segue de muito perto a lição de Leandro. Essa obra não parece ser a
narrativa em prosa de Rafael Augusto de Sousa, que quase de certeza circulou no
Brasil[7],
já que são muitas as diferenças ao nível dos procedimentos estruturais, do
enredo, dos símbolos e dos actantes envolvidos; a não ser que a partir do
núcleo invariante deste modelo Leandro Gomes de Barros tenha construído novas
estruturas que Apolônio Alves dos Santos aproveita, como o sonho (em que um
vulto aparece a Pedro Cem acusando-o e prevendo-lhe um futuro de mendicidade),
a pobre (a quem o protagonista nega ajuda), a Marquesa de Évora (que alimenta e
oferece algum dinheiro a essa «desvalida» (Santos, 1981: 3), com o qual «Ela
com duas irmãs/ trataram então de comprar/ uma máquina fiandeira/ e foram as
três trabalhar/ com pouco tempo enricaram/ só vivendo do tear» (idem: 4)), a «sacola» (que o rapaz do sonho dá a
Pedro Cem «dizendo futuramente/ esta é quem te consola/ com esta hás-de sair/
nas ruas pedindo esmola» (idem: 5)) e os quadros (que, representando momentos culminantes da
insensibilidade e crueldade de Pedro Cem e veiculando mensagens alegóricas e
aforísticas sobre o Bem e o Mal, o mesmo enviado mostra ao capitalista).
Segundo Roberto Benjamim, no
depoimento a que acima nos referimos, «Ao escrever Cinco Livros do Povo, publicado em 1953, em que trata de fontes
escritas das literaturas oral e de cordel brasileiras, Luís da Câmara Cascudo
omite qualquer referência à lenda de Pedro Cem. No ano seguinte, na primeira
edição do Dicionário do Folclore Brasileiro, repete as informações que havia usado em 1939 em Vaqueiros
e Cantadores. Inclusive, a
existência da obra de Rafael Augusto de Sousa, A Vida de Pedro Cem, sem esclarecer que a mesma haja circulado
no Brasil». Ainda na opinião deste autor, «O fato de que a lenda de Pedro Cem
corresse na oralidade, na segunda metade do século XIX e começo do século XX,
não exclui a possibilidade da circulação, no Brasil, de uma versão impressa. O
próprio Cascudo reconhece que a história era contada como “apólogo moral” nas
noites sertanejas, da qual o pai dele sabia algumas quadras». Por isso, faz
todo o sentido levantar esta hipótese, com que o estudioso brasileiro encerra o
seu depoimento: «Seria o caso de verificar a possibilidade de que tal lenda,
proveniente de Portugal, houvesse chegado no Brasil em alguma publicação de
natureza moralizante, tal como as histórias de Trancoso e alguns sermões».
Esta relação intertextual
constitui um sugestivo ponto de partida para um estudo de sociologia da
literatura que poderá averiguar em que medida Apolônio se preocupou ou não em
dissimular o modelo não só da arquitectura como da estrutura sintagmática da
sua composição. O simples facto de se evocar um livro em prosa e de não se
mencionar o nome de Leandro (ou João Martins de Athayde, se a leitura de
Apolônio decorrer do folheto em que aparece apenas o nome do comprador dos
folhetos do poeta falecido em 1918, como se disse acima em nota) é suficiente
para se considerar a possibilidade de encobrimento, talvez para garantir mais
prestígio a esta versão e até para evitar alguma controvérsia com eventuais herdeiros
de Leandro ou Athayde; de facto, não podemos também ignorar que, em 1981, data
da publicação do folheto aqui abordado, a questão dos direitos de autor no
universo editorial do cordel já se levantava como um problema sério. Seja como
for, sublinhemos o que já sugerimos noutras fases deste ensaio: como não
consideramos este estudo encerrado, nem muito menos o nosso interesse pela
literatura de cordel brasileira, poderemos rectificar esta informação e estas
conclusões em qualquer momento.
Independentemente desta
discussão que se prende com a definição e a consciência do plágio numa fase já
adiantada do cordel brasileiro, o que importa acentuar é que estes poetas
operam como transmissores e inovadores dentro de uma tradição literária que em
grande é o seu mundo e que depende deles para subsistir e se reinventar.
Apolônio, ao criar sobre um fundo que para um leitor letrado poderá parecer
demasiado à superfície do novo texto, insere-se num modo ancestral de criação
da poesia tradicional. O que no caso pode desviar-nos do essencial é o valor
desproporcionado que se atribui à escrita; mas, na literatura tradicional e em
especial no cordel, a letra é um dispositivo de fixação que não se sobrepõe ao
oral e memorial.
7. No Brasil, Pedro Cem não
constitui apenas a personagem dos folhetos de Leandro Gomes de Barros (ou João
Martins de Athayde) e de Apolônio Alves dos Santos, personagem a quem os
cantadores, que transformam o texto escrito em texto oral e memorial, têm
garantido uma projecção que ultrapassa a do registo escrito[8];
ele é também evocado num número muito significativo de folhetos como exemplo do
ser humano ganancioso, mesquinho e malévolo, o que significa que ocupa um lugar
central no imaginário do cordel, intensamente atravessado pelo espírito e pela
sensibilidade do catolicismo tradicional. Sem pretensões de exaustividade,
enumeramos a seguir uma série relativamente longa de ocorrências que não é
despropositada no contexto deste estudo porque convém dar uma medida
razoavelmente aproximada da amplitude do fenómeno. Fizemos o levantamento
durante o mês de Agosto de 2008 na nossa colecção de folhetos e principalmente
nos 3.906 títulos existentes na Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular (Museu do Folclore do Rio de Janeiro, como já
referimos em nota): «Tinha o carácter de Judas/ nunca sorria com ninguém/ e era
mais orgulhoso/ mesmo do que Pedro Cem/ misericórdia na vida/ nunca teve de
ninguém» (19--: 12); «Dessa vez queimou-se tudo/ até o prédio também/ o
incêndio foi tão grande/ de não escapar ninguém/ ele ficou na miséria/ pior do
que Pedro cem» (19--: 16); «Francis Souza Dantas Forbes/ de São Paulo “gente
bem”/ que gasta só numa casa/ dinheiro como ninguém. – Só trinta e quatro
milhões,/ ganhou nas exportações, – esse novo Pedro Cem» (19--: 6); «Em sua
casa não dava/ uma pousada a ninguém;/ tinha dó de um copo d’água;/ não dava
esmola, também;/ era ruim, mas muito ruim./ – Tinha o génio de Caim/ e a alma
de Pedro Cem» (1958: 1)[9];
«Saí de Jacarezinho/ com o traseiro roído/ sofrendo mais que um réu/ em um
cubículo esquecido/ fui para a vila vintém/ parecendo Pedro Cem/ no mundo
desprotegido» (19--: 11); «Todos conhecem a história/ do avarento Pedro cem/
que tinha vilas de casa/ fazendas e gados também/ após tanta avareza/ morou nas
mãos da pobreza/ mendigo sem um vintém// Dentro de uma só noite/ perdeu o que
possuía/ foi pedir de porta em porta/ a quem antes lhe pedira/ e o avaro
negava/ dizendo que o que ganhava/ para ele mal cabia// Igual a este elemento/
neste mundo ainda tem/ conheço um Chagas Freitas/ um Delfim Neto também/ para
falar a verdade/ dentro de toda a cidade/ existem os pedros cem» (1985: 7); «É
um conselho exemplar/ o famoso Pedro Cem/ nunca se deve negar/ o que nos pede
um alguém/ para não se condenar/ como Lino de Alencar/ no mal em Paga do Bem»
(1981: 8); «Eu conheci Pedro cem/ quando já não tinha nada/ tava uma cagada/
por quatro mil e cem/ aí foi passando um trem/ ele se achou em perigo/ não
combinando comigo/ o pai do Chico Banzé/ casou-se num cabaré/ com a mãe de
calor de fogo» (19--: 2); «Há muitos ricos que têm/ dinheiro como vasculho/
porém devido o orgulho/ não dar esmola a ninguém/ mais rico foi Pedro Cem/
porém perdeu a morada/ toda riqueza elevada/ liquidou-se num segundo/ findou-se
pobre no mundo/ a vida tornou-se em nada» (19--: 8); «– Você avistando o velho/
faça que não ver ninguém/ é a alma dum mesquinho/ pior do que Pedro Cem/ o tal
matou um vizinho/ porque devia um vintém» (19--: 9); «E também Farrapo Humano/
e a vida de Pedro Cem/ as Proezas de João Grilo/ eu quero escutar também/ a
estória de Pedro Quengo/ que nunca enganou ninguém» (1986: 45); «Quem já leu de
Pedro cem/ a sua biografia/ já viu que ele vivia/ no mundo como ninguém/ nunca
quis fazer o bem/ a alguma pobre coitada/ sua fortuna avultada/ com 3 dias
liquidou-se/ ele esmolando findou-se/ que pecador não é nada» (1986: 45); «Eu
sei que alguém já tem lido/ o drama de Pedro Cem/ e por isso é que desejo/ que
leia este aqui também./ Depois, por favor, me diga/ se eu acusei alguém!» (1977:
2); «Para tanto Sansão/ para orgulho Pedro Cem/ Pra viver Matusalém/ Pra
ciência Salomão/ pra guerrear Napoleão/ o Nero no barbarismo/ Hermes no
militarismo/ Gambeta em Geografia/ Platão em Filosofia/ Mesmer no magnetismo»
(1923: 2); «Uma garrafa sem cano/ e sem gatilho também/ os restos de uma
espingarda/ do tempo de Pedro Sem/ umas tiras de “macaca”/ e uns quatro quicés
de faca/ que não valiam um vintém» (1965: 22); «Sofrendo igual Pedro sem/
quando caiu na pobreza/ sem amparo de ninguém/ a não ser da natureza/ assim
vive o Zé-Povinho/ sem amor e sem carinho/ na mais completa tristeza» (19--:
7).
8. O folheto português História
e Vida de Pedro-Sem (em Prosa e Verso), editado, como dissemos, no Porto, sem indicação da
data e do autor, com 16 páginas e 17 cm por 12,5 cm, insiste, a abrir, na lição
exemplar do texto, imediatamente a seguir à síntese dos episódios ligados à
«casa que, segundo a lenda, pertencera a Pedro-Sem» («Quantos dramas nela se
passaram! Quantas orgias nela se fizeram e quantas lágrimas depois se
derramaram!» (s.d.: 3)): «Todos devemos sabê-la. É uma história de crimes e de
castigos em que se revela a mão de Deus» (idem: 3-4). Tal como na Vida e História de Pedro-Sem de Rafael Augusto de Sousa, o discurso
historicista de abertura, na circunstância sobre a casa e a torre de Pedro Sem,
tem como função inscrever o narrado num fundo histórico-cultural que não só
nomeia os lugares em que se deu a proscrição do mal e a exaltação da
integridade cristã como também liga dinamicamente o passado ao presente. A
fidelidade à matéria histórica é ainda reforçada com a explicação que o
narrador, «o velho Joaquim» (idem: 4), apresenta para o antropónimo e para a pessoa Pedro-Sem (tal como
acontece no folheto de Rafael Augusto de Sousa): «Houve um tempo (...) um
negociante, rico, mas honrado e que se chamava Pedro-Sem. Esse homem, um dos
maiores mercadores do Porto, gozava de geral estima. Tinha então um caixeiro,
que captara a sua confiança e que pela sua morte ficou herdeiro de tudo o que
era seu. Nunca se lhe apurou o nome, porque por morte do patrão ficou também
sendo conhecido por Pedro-Sem. É esse Pedro-Sem o protagonista desta história»
(idem: 5). Sousa Viterbo
sustenta, no escrito que referimos no início deste ensaio, a tese da existência
de um Pedro Cem portuense e comerciante abastado e respeitado por bons motivos;
mas nada alega em favor de um homónimo seu empregado que, segundo o que se
afirma nesta versão, o terá substituído: «No último quartel do século XVII
existia no Porto um indivíduo chamado Pedro Cem, conforme vem ortografado no documento oficial, e
que devia ser homem de teres e um dos principais comerciantes daquela praça.
(...) O nome de Pedro Cem,
conforme o documento que acima citamos, ou está mal ortografado por incúria de
quem o registou, ou traduz a forma por que já se pronunciava na corrupção
popular. O seu verdadeiro nome é Pedro Pedrossen, segundo o demonstram e
confirmam sem discrepância todos os documentos» (1897: 2-3).
A linguagem e o estilo desta
versão não se afastam do modelo romântico ou ultra-romântico, a que, como
afirmámos, obedece aquela que é provavelmente a sua fonte principal. Mas à
influência exercida directamente pela Vida e História de Pedro-Sem de Rafael Augusto de Sousa, narrativa em
prosa em relação à qual Sousa Viterbo diz que «até o preço por que se vende,
120 réis, está traindo as suas pretensões literárias» (idem: 2), vem sem dúvida juntar-se o paradigma propriamente dito do cordel. No
modelo do Bazar Feniano, que vive uma idade de ouro na década de 30 de Novecentos,
a redução do texto para cerca de metade relativamente à extensão usada por
Rafael Augusto de Sousa acarreta uma impressão de comedimento que todavia não
anula as influências românticas, ultra-românticas e, até, contemporaneamente,
ou quase, neo-românticas, se, conforme observávamos acima, o folheto tiver sido
composto entre o final do século XIX e os anos 30 ou 40 do século XX. As
características desta composição acompanham o quadro geral do tipo de
literatura de massa a que pertence, decalcando quase integralmente as
sequências da versão de Rafael Augusto de Sousa e algumas estruturas
sintagmáticas nucleares[10],
exceptuando-se a conclusão (como explicaremos abaixo): estilo emocionado e
oratório; moralismo apaixonadamente católico e social; promoção dos valores
cristãos de humildade, altruísmo, compadecimento e perdão; articulação de
situações diegéticas muito reconhecidas e apreciadas pelo público; descrição
cínica de caracteres tipo. Esta poética não é em si mesma um defeito, nem
simplesmente uma degenerescência de matrizes literárias cultas, nem
propriamente um caso de plágio (como é sabido, o que interessava no mundo
editorial do cordel era mais a propriedade do que a autoria): os leitores não
pedem ao cordel «que lhes proponha novas experiências formais ou subversões
dramáticas e problemáticas dos sistemas de valores vigentes, mas exactamente o
contrário: que reforce os sistemas de expectativa integrados na cultura vigente
e com ela conformes» (Eco, 1991: 81). Aplicadas ao romance popular, aquelas palavras
de Umberto Eco adequam-se perfeitamente à lenda e aos folhetos que aqui
estudamos, não tanto para salientar o que neles é excessivo mas sobretudo para
valorizar a sua dignidade de obras genuína e intrinsecamente de cordel.
A expressão deste folheto, no
seu rigor automático e previsível, sugere a existência de uma realidade
exterior igualmente fixa e mecânica. O narrador, cuja constituição mental e
ideológica atravessa todo o texto sem qualquer ambiguidade, usa por isso uma
fraseologia carregada de semas de virtude ou pecado (que, às vezes, confluem no
mesmo enunciado): «Por ele soube a desventurada menina que seu pai havia
procurado o vil sedutor para lhe dar uma reparação» (s.d.: 8). A estabilidade,
a lógica de uma escrita que faz corresponder às instâncias estruturais da
realidade (pessoas, substâncias, casos) as classes morfológicas nucleares
(verbo, nome, adjectivo) é um modo de conceptualizar a lógica do bem e do mal:
«Este, porém, negara o crime com um cinismo atroz, e justificara o seu acto ferindo
mortalmente o pai como moralmente ferira a filha» (ibidem). Num texto em que abundam os derrames
verbais de tipo sentimental e emotivo, há por vezes uma inventiva que
surpreende pela energia imagética que veicula os ímpetos da megalomania de
Pedro Cem (do humano): «Mas hei-de fazer um mausoléu que há-de assombrar o
mundo. A terra há-de gemer ao peso do seu mármore e do seu ouro» (idem: 9). Também os influxos acusatórios do
narrador, desencadeados pela necessidade de marcar a inscrição do texto na cosmovisão
cristã, têm um contrapeso de maior sofisticação na ironia austera da última
frase, que se impõe estrategicamente enquanto proposição filosófica e
metafísica: «Foi este o fim daquele homem sem coração. Não tremeu a terra com o
peso do mármore e ouro do seu jazigo, abrindo-se apenas para devorar o seu
cadáver alguns anos depois» (idem: 11). Esta punição pela ironia denuncia uma revolta que não se
manifesta na narrativa-fonte. Não por acaso, neste texto, a função do pecado
não é atenuada pela do arrependimento; com o apagamento desta função
intermédia, acentua-se a maldade de Pedro Sem e justifica-se simultaneamente a
ausência da atenuação do castigo: incapaz de revelar um comportamento adequado
perante a evidência dos seus pecados, ele não pode ser contemplado com a
caridade dos que sofreram às suas mãos e por isso assistem à sua ruína sem pôr
em prática a misericórdia de Deus.
A versão em verso desta História
e Vida de Pedro-Sem,
composta por cinquenta e seis quadras, é uma reconversão económica, sequência a
sequência, do texto em prosa (que, constituído por seis capítulos com
intertítulos e um «epílogo», conta a mais com um prólogo, no início do primeiro
capítulo, em que dialogam um eu e um tu, «o Joaquim da Torre», que assumirá a
narração de terceira pessoa); uma paráfrase, portanto, da versão em prosa, que,
dependendo da orientação da leitura, também pode ser uma paráfrase do texto
versificado. O estilo, mais despojado e até não raro monótono de tão
previsível, serve o gosto de um público que procura nos folhetos de cordel e
nas folhas volantes casos susceptíveis de alimentar o seu psiquismo ávido de
emoções e exemplos de maldade humana, punição divina e devoção. Confirmemos
esta síntese com a passagem seguinte, que documenta, num tom arrebatado e declamatório,
um sistema simbólico literário, dito popular e oral, e sociocultural e
religioso, envolvendo uma mentalidade com as suas crenças, medos e anseios:
«Morreu o velho! sua alma/ Voara a outra mansão./ Mas não sem ter perdoado/ A
filha do coração.// Pedro-Sem um novo crime/ Sem remorsos cometia./ É que no
seu rude peito,/ Nenhum sentimento havia.// Vejam pois quantas infâmias/ Esse
monstro cometeu./ Mas sem o menor remorso,/ Em paz ele adormeceu» (idem: 14). Esta transcrição corresponde a uma
estrutura semionarrativa (expressão inscrita na semiótica greimasiana) que
apenas conhecemos nas versões cordelísticas portuguesas. Significa isto que o
motivema do assassinato transforma a lenda de Pedro Sem num autêntico romance
popular em verso (cantiga narrativa, como se sabe, no registo oral), género
muito em voga no nosso país, grosso modo, durante as décadas de 40 a 80 do século passado.
Duas textualidades, duas paráfrases da mesma lenda, como se vê, que podem
interessar ao mesmo leitor ou a leitores com gostos ou capacidades de
descodificação diferentes.
9.
Recentemente, Helder Pacheco, com A História de Pedro Sem – Um Portuense de
Maus Fígados (2005), e
Inácio Nuno Pignatelli, com a Lenda de Pedro Cem (2007), recuperam esta narrativa de exemplaridade
tanto da tradição oral (sobretudo portuense) como da tradição do cordel
português e brasileiro e da tradição culta, e inscrevem-na, de pleno direito,
no sistema semiótico literário e no campo mais específico da literatura para a
infância e a juventude.
10. O enunciador do texto de
Helder Pacheco reconhece a existência de um hipotexto oral (virtual) que será a
matriz de um novo dizer marcado pelas leis da literatura que vive na oralidade
tradicional[11]:
essencialmente o anonimato, a difusão ampla, a antiguidade, a variação e a
persistência de um núcleo invariante ao nível da estrutura profunda e da
estrutura de superfície. Isto é: o texto existe num circuito de recepção e
transmissão-criação que, de modo apelativo, o emissor problematiza no incipit, subvertendo uma técnica por excelência das histórias
tradicionais (a fórmula de começo): «Habitualmente, as histórias começam por
“era uma vez”, mas não vale a pena, só para manter o costume, fazer sempre a
mesma coisa. E como nem tenho a certeza disto que lhes vou narrar ter
acontecido, começarei então por dizer o seguinte: segundo contavam as pessoas
antigas, vivia no Porto certo personagem que ficaria para sempre famoso pelo
que lhe aconteceu. De qualquer modo, os antigos como minha avó, a quem ouvi
contar a história, nem duvidavam que o homem era mesmo verdadeiro»[12].
O leitor é assim colocado no centro de uma discussão sobre a verdade e a
mentira do texto literário (o oral e o escrito); uma discussão que envolve a
verdade das verdades que é o nome próprio: «Uns diziam que ele era um rico
negociante estrangeiro, vindo de Hamburgo, de nome Pedrossem. (...) Mas não era
a última palavra, pois ainda aparecia quem dissesse Pero Sem, Pedro Sem,
Pedro-Sem e Pedro Docem». Mas a verdade do nome é insignificante face ao valor
ético da verdade da mentira (ficção), desde que animada por uma tensão vital
constante de exemplaridade:
«Os avós contavam-na aos netos, para que não esquecessem o exemplo do dono da
maior fortuna do seu tempo, que o orgulho, a soberba e o egoísmo fizeram perder
enquanto o diabo esfrega um olho». O que persiste, afinal, é a verdade da
mensagem que cria uma factualidade simbólica e alegórica, não a verdade estrita
dos factos: «Sei – pelo que me contava minha avó – que durante muito tempo se
ouviu nas ruas o lamento meio cantado, meio chorado e quase suplicante – Quem
dá esmola ao Pedro Sem,/ Que já teve e agora não tem?». O acto de contar o
contado, o jogo de dizer o ouvido em que se insiste desde o subtítulo
parentético da folha de rosto – «(Tal como me foi contada por minha avó)» –,
gera um mundo de ficção cuja verdade alimenta a verdade da existência. O impossível
da diegese e da personagem
reverte num efeito de veracidade que desencadeia a encarnação do narrado: o
texto de Helder Pacheco é herdeiro, activo e problematizador, de outro(s)
texto(s) e de outras vozes. A personagem é composição verbal e referência, ligação entre o universo do texto e o
universo empírico; daí o excurso exemplarista final, no tom de conversa
cúmplice que vem desde a primeira frase da obra: «Antes de escrever, como nos
filmes, a palavra fim, ainda gostaria, meus amigos que leram esta lenda acerca
dos dias da glória e da desgraça do personagem que a inspirou, de lhes dizer o
seguinte: aqui para nós que ninguém nos ouve, não pensem que os Pedros Sens são
coisa do passado. Não. Eles continuam a existir e a fazer fortunas colossais,
por aí, mundo fora, calcando tudo e todos, para acumularem os máximos lucros,
sem olharem a meios». Imediatamente a seguir, no último parágrafo, o narrador
define autodeterminação, complexo de direitos e deveres que é um processo de
humanização: «Mas, para tirarmos algum proveito do que a história significa, na
sua aparente simplicidade ela diz-nos que, mais cedo ou mais tarde, todos
prestam contas, porque, tal como a vida dos homens, nenhuma riqueza, nenhum
poder duram eternamente. E há sempre um dia em que, quando menos se espera...
(e agora é mesmo o) FIM (adeus)».
A voz que constantemente
interpela o leitor não deixa de marcar bem a ligação da história à identidade
do Porto, cidade a que associamos elementos de carácter como a capacidade de
resistência heróica a todo o tipo de adversidades, a franqueza e o brio: «Não
sei se as pessoas, que tanto o odiavam em rico, chegaram a ajudá-lo quando o
viram na maior decadência. Talvez não, já que, sendo justo e verdadeiro, o povo
do Porto não costuma esquecer as afrontas e ofensas dos que o humilham e
desprezam». Mas, como nenhuma comunidade é um corpo rígido e linear, importa
usar na sua avaliação um método que considere a diversidade do real; duvidar,
no caso, é analisar mais profundamente, ter em conta a complexidade do mundo e
perceber que as fronteiras entre o bem e o mal são indecidíveis: «Ou talvez
sim, porque o povo do Porto também tinha bom coração e, não raro, por piedade,
perdoava aos infelizes, sobretudo quando os via na mó de baixo, à mercê da
caridade alheia. Não sei, de facto, qual foi a reacção da gente. Se lhes falou
a voz do coração para perdoarem ou a lembrança das patifarias do
pobre-que-já-fora-riquíssimo para o castigarem». A realidade é devir e portanto
há que preservar, na leitura da história que a representa, o prazer da busca
das verdades do texto e do real.
Este jogo de memórias colectivas
e individuais é uma cosmogonia. Do texto emerge um universo preexistente, um
cosmos, harmonioso e coeso, que a nova construção textual assume como a
estrutura em que assenta, e de que é, simultaneamente, ritual de revivificação
e expansão. Este cosmos só se dilata porque os leitores nele participam
cumplicemente, convocados por um eu que domina uma linguagem falada e
estilizada em que o registo mais oral, pontuado por expressões populares e
idiomáticas («Mas era coisa impossível e jamais acontecida já que, diga-se, ao
fulano, mau como as cobras para os mais fracos e avarento até ao tutano dos
ossos, isso nem lhe passava pela cabeça»), convive com a escrita mais
classicizante: «Um vento ciclónico, uivante, amedrontador, varreu os espaços
vindos da costa, e o mar levantou-se em cólera, com ondas colossais que varreram
as praias, desmantelaram tudo na sua frente, despedaçaram os navios de Pedro
Sem e engoliram a armada inteira, os seus tripulantes e as incontáveis riquezas
que transportavam». Esta combinação ou esta alternância resultam na vivacidade
rítmico-melódica do texto de Helder Pacheco e, consequentemente, na
intensificação do prazer da leitura e dos significados; um prazer que tem muito
a ver com a intenção de realismo e verosimilhança do relato, que não se perde
no acontecimento inaudito e extraordinário que é a tempestade. A credibilidade da voz
narrativa, que com toda a naturalidade se aproxima dos leitores, criando um
quadro de conversa descontraída mas ao mesmo tempo pautada pela seriedade da
mensagem ética, vem ainda do efeito cinemático do discurso: o todo que é a
tempestade vê-se em movimento (em eixos de visualidade organizados num grande
plano e em planos de pormenor). À confluência da voz e do ouvido acrescem
sensações psicossomáticas que irradiam da energia textual captada pela epiderme
do leitor. Lemos o episódio da tempestade, pois, óptica, auditiva, cinemática e
sensorialmente: «Um frio terrível, capaz de rachar as pedras, caiu sobre o
burgo. Os trovões, como bombas de mil canhões, atroaram os ares. Raios e
coriscos irromperam de todos os lados arrasando telhados, partindo árvores e
destruindo casas». Corpo e espírito fundem-se sinestesicamente através da
leitura, desde o primeiro segmento narrativo desta sequência (apresentada com
um apontamento que reforça a vocação pedagógica da narrativa de Helder
Pacheco): «E o céu castigou-o. No mesmo instante, naquela manhã luminosa, o sol
deixou de brilhar, o dia escureceu e o ambiente ficou pesado como chumbo,
coberto de névoa espessa».
11. Na Lenda de Pedro Cem de Inácio Nuno Pignatelli, privilegia-se,
dentro da economia própria da quadra heptassilábica, a redução ao essencial de
todos os elementos constituintes: personagens, acção, espaço, tempo e modos de
apresentação da narrativa articulam-se numa unidade coerente com vinte e três
estrofes (das quais sete correspondem ao refrão: «Era uma vez Pedro Cem/
Soberbo como ninguém./ Era uma vez Pedro Cem/ Soberbo como ninguém»). Na
abertura deste relato versificado, identifica-se o protagonista e descreve-se a
sua riqueza material, isotopia temática concretizada em isotopias figurativas
de que nenhuma versão aqui em análise prescinde (palácio com torre, barcos,
tesouros): «Pedro Cem tinha um palácio/ Tinha navios no mar/ Tesouros e mais
tesouros/ De um nunca mais acabar» (2007: 8). A nomeação da personagem obedece
às características do género em que este texto se integra desde o título; mas,
curiosamente, a localização espacial é indeterminada, contrariando quer a
sugestão de algumas ilustrações que parecem representar o casario típico do
Porto, quer as referências à casa e sua torre, quer o emprego do nome «cidade»
num contexto em que parece que o enunciador assume a ocorrência anterior do
topónimo «Porto»: «Hoje percorre a cidade» (idem: 32); isto, como é óbvio, para além do que no
posfácio nos diz Júlio Couto, que associa a lenda de Pedro Sem à cidade do
Porto e a uma casa específica: «Nasci numa pequena ilha de Miguel Bombarda,
entre as saias das velhas mulheres daquele aglomerado, com as suas muitas
histórias de mouras encantadas, bruxas, lobisomens, cavaleiros e senhores de
dom, em que perorava minha avó, matriarca-mor de um reino de matriarcas, e à
tutelar sombra de uma torre medieval, ao fundo da rua, que sempre nos foi
revelada como a Torre de Pedro Sem» (idem: 39). O valor deste testemunho não reside só na definição
de um tipo de comunidade em que se valoriza a figura do contador e a sua arte
de contar; advém ainda do desdobramento de Júlio Couto em informante, que, como
se pode ver na epígrafe a este estudo, nos dá a sua versão da lenda.
Esta instabilidade (relativa) do
espaço não diminui o efeito de autenticidade do texto. O uso, exclusivo da
narrativa de Inácio Pignatelli, do presente histórico, que alterna com o
recurso ao pretérito imperfeito e ao pretérito perfeito do indicativo, origina
a presentificação da personagem e dos episódios: «Barcos, palácio, riqueza/
Tudo viu desmoronar./ Hoje percorre a cidade/ Louco e pobre a mendigar» (idem: 32). O ritmo encantatório próprio de
romances tradicionais como a Nau Catrineta envolve o leitor numa vocalidade que o aproxima dos
cenários e dos acontecimentos (mesmo se, por vezes, o excesso de rimas finais
no infinitivo provoca alguma monotonia): «Palavras não eram ditas/ Tempestade
sobre o mar./ Erguem-se as ondas em fúria/ Ribombam trovões no ar» (idem: 24). A melopeia que o texto é desencadeia
a adesão de quem lê e/ou ouve uma fala estetizada: uma fala que, na harmonia
rítmica do verso, é um mundo de palavras com uma história de que esperamos,
como sempre que lemos um texto literário, a decifração dos enigmas do (nosso)
universo.
12.
A vinculação mais evidente de todas estas composições a um hipotexto matricial,
oral, de que em epígrafe transcrevemos uma versão, ou escrito, estabelece-se na
última réplica de Pedro Sem, cuja imagem que permanece na memória do leitor se
constitui, antes de mais, como produto dessa síntese de palavras. Esta
fala-eco, que exibe a mensagem do texto, desdobra-se, em cada reconto ou
reescrita, em variantes lexicais e parafrásticas que conservam a invariante
fabular (varia a expressão, em maior ou menor grau, mas não o conteúdo
profundo) (Nascimento, 2005-2006: 167-180): «Pedro Sem que muito já teve e
agora não tem» (subtítulo do cordel português de Rafael Augusto de Sousa);
«Dizendo: Quem dá esmola/ Para o pobre Pedro-Sem,/ Que já teve mil fortunas/
E que hoje nada tem»
(cordel português anónimo); «A Justiça examinando/ Os bolsos de Pedro Cem/
Encontrou uma mochila/ E dentro dela um vintém/ E um letreiro que dizia: “Ontem
teve, hoje não tem”»
(cordel brasileiro de Leandro Gomes de Barros); «Ele dizia nas portas/ Esmola
pra Pedro Cem/ que já foi
milionário/ Ontem teve hoje não tem/ Quem não quiser dar não dê/ Que não imploro a
ninguém» (cordel brasileiro de Apolônio Alves dos Santos); «Quem dá esmola
ao Pedro Sem,/ Que já teve e agora não tem?» (Helder Pacheco); «Uma esmola a Pedro Sem/ Que
já teve e que não tem./ Uma esmola a Pedro Sem/ Que já teve e que não tem» (Inácio Nuno Pignatelli)[13].
Quer dizer: as metamorfoses do texto-modelo (abstracto) têm o seu ponto de
maior estabilização formal e conteudística nestes segmentos.
Nesta
lenda, que liga directamente tradições, cultas e populares, épocas e as
culturas comunais de Portugal e do Brasil, convergem as directrizes essenciais da
cultura de raiz judaico-cristã e por isso os diversos intertextos aqui
analisados têm uma dimensão arqueológica: configuram representações de uma
narrativa arquetípica em que se codifica a doutrina de judeus, católicos e
outros seguidores de Cristo ou, melhor, todas as doutrinas que promovem a
partilha, a fraternidade e o amor pelo outro; negando o contrário de cada um
daqueles valores através da mitificação pela negativa de um Pedro Sem ou Cem
símbolo de verdades para a vida, é esta uma narrativa, reescrita e dada a
público, em 2005 e 2007, em prosa e em verso, para, antes de mais, um leitor
infantil e juvenil, que os adultos são convidados a (re)visitar, para que não
se desliguem do prazer de ler/ouvir e ensinar histórias simples e exemplares.
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[1] A referência a esta personagem e à sua vida, num conto publicado mais de duas décadas antes, prova que a lenda integrava a enciclopédia da comunidade: «– Ó mulher de não sei que diga! Cale-se para aí com trinta milhões de diabos! Põe-se a fazer crescer a água na boca à gente para nos deixar aguados! Diga por uma vez o que tem, se é que tem alguma coisa, e não me esteja com histórias de Pedro Cem, que já teve e ora não tem» (Sarmento, 1876: 219). No romance de Camilo Castelo Branco As Três Irmãs (1862: 85), diz-se que «Pedro foi rico e opulento e que ao tempo da mocidade de um velho, que figura na acção, estava acabando na indigência» («Pedro Sem», apud Vasconcelos, 1966: 718-719. Note-se que em José Leite de Vasconcelos encontrámos um número muito significativo de referências bibliográficas à lenda de Pedro Cem mas nenhuma versão recolhida da oralidade; e não é menos curioso que em nenhuma outra colectânea de contos populares e lendas encontrámos qualquer ocorrência da lenda de Pedro Cem, que, como se conclui pela epígrafe com que abrimos este estudo, é ainda conhecida no Porto).
Sousa Viterbo publicará ainda pelo menos mais duas vezes este ensaio: em 1900, de novo em opúsculo (s.l., s.d.), e, em três partes, em 1909, no periódico do Porto O Tripeiro, o que atesta o seu interesse e o do público por esta figura lendária (10 de Fevereiro, pp. 73-74; 20 de Fevereiro, pp. 91-92; 01 de Março, pp. 101-103). Não por acaso, logo na edição de O Tripeiro de 20 de Março de 1909, «um assinante tripeiro» dirige-se a Sousa Viterbo fornecendo-lhes informações provenientes de um original obtido junto «de um membro da família Van-Zeller (...), com cuja família se achavam ligados os Pedrossens – uns apontamentos antigos de família, cuja cópia, na parte respeitante ao personagem, ofereço ao Sr. Viterbo, se algum interesse neles encontrar para as suas investigações» (p. 130).
Sobre a persistência da tese que associa os nomes Pedro Cem e Pedro Pedrossem, deparámos com registos como este: «Foi isto em sessão de 11 de Setembro de 1759, presidida por Pedro Pedrossem da Silva, o lendário Pedro Cem, que simplesmente assinou a acta»; e, no parágrafo seguinte, acrescenta-se: «Em sessão de 10 de Março de 1761, presidida pelo mesmo Pedro Cem, outros três mordomos o envergonharam» (Ferreira, 1909: 62. Sublinhados no original). No mesmo ano e ainda n’O Tripeiro, J. J. Gonçalves Coelho narra a lenda numa linguagem culta de sabor neo-romântico e discute criticamente vários dados genealógicos relativos a um Pedro Docém, filho de Martim Docém, cavaleiro nobre «que em 1312 vivia no Porto», conforme se lê numa «escritura particular dessa data, na qual o cidadão do Porto Domingos Martins Bicos dá plena quitação a Maria Martins, viúva de Fernão Leite, por ter recebido, por intermédio do dito Martim Docém, 14 maravedis velhos que Fernão Leite lhe devia» (1909: 121). A opinião que construímos depois de conhecermos esta lenda e de consultarmos a bibliografia aqui referida coincide com o pensamento deste autor, que, a terminar o seu artigo, afirma: «A lenda de Pedro Sem não passa portanto de uma adaptação» (p. 122); uma adaptação que nasce da articulação entre um edifício, «primitivamente conhecido pela designação de “Torre da Boa Vista”», propriedade da família «os Docéns» (p. 121), o «costume de ir ver do alto destas torres a chegada das embarcações» (p. 123) e uma pessoa empírica que, pela sua elevada posição na sociedade, é associada «à do protagonista da emocionante narrativa popular, fazendo dele um mercador abastado, a maior categoria social para os seculares costumes do povo do Porto, sempre intransigente e incompatível com os aristocratas» (ibidem).
[2] Devemos esta informação bibliográfica a José Joaquim Dias Marques, a quem agradecemos (2002: 397).
[3] «Depois de muitos trabalhos e indagações, de conferir e estudar muita cópia bárbara, que a grande custo se arrancou à ignorância e acanhamento de amas secas e lavadeiras e saloias velhas, hoje principais depositárias desta arqueologia nacional, – galantes cofres, em que para descobrir pouco que seja é necessário esgravatar como o pullus gallinaceus de Fedro, – alguma coisa se pôde obter, informe e mutilada pela rudeza das mãos e memórias por onde passou» (1963: 53-54. Sublinhados no original).
[4] É o caso dos folhetos História de João Soldado Que Zurziu o Diabo com um Cajadinho e Encanto dos Namorados: Colecção de Cartas de Namoro em Verso, cujas 11.ª ed. e 10.ª ed. são, respectivamente, de 1936 e 1939.
[5] A Vida de Pedro Cem, de acordo com diversos especialistas, pertence inequivocamente a Leandro Gomes de Barros, e por isso é que, nas Antologias publicadas pela Casa Rui Barbosa, a autoria do folheto é atribuída àquele que é considerado o primeiro a editar e a comercializar o cordel no Brasil, talvez na última década do século XIX. Mas A Vida de Pedro Cem foi também difundida por João Martins de Athayde, editor e poeta (1880-1959), que comprou a produção de Leandro Gomes de Barros à sua viúva, publicando-o durante décadas apenas com o seu nome; em 1950, João Martins de Athayde vendeu a José Bernardo da Silva (1901-1972) o seu acervo e consequentemente o seu nome continuou associado mais alguns anos à Vida de Pedro Cem (e depois através da editora propriedade das Filhas de José Bernardo da Silva). Sobre alguns dos nomes mais eminentes do cordel brasileiro, veja-se, por exemplo, «Mestres do cordel» (AA.VV, 2001. Sem numeração de páginas).
[6] De acordo com o nosso amigo Professor Doutor Roberto Benjamim, a quem agradecemos ao a leitura deste ensaio e as informações fornecidas sobre a lenda de Pedro Cem no Brasil, existem «no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro duas versões de autoria de Leandro Gomes de Barros: A História de Pedro Cem, de 16 páginas, editada em 1917, na Parayba (hoje João Pessoa), pela Popular Editora, de propriedade do também poeta Francisco das Chagas Batista; e a outra, A Vida de Pedro Cem, editada por Pedro Batista, em 1919, juntamente com outros poemas em um folheto de 48 páginas, publicado na cidade de Guarabira».
[7] Veja-se a nota de rodapé n.º 8, que atesta a celebridade da lenda de Pedro Cem, ainda em versões portuguesas possivelmente tanto orais como de cordel, entre os cantadores brasileiros.
[8] Estes depoimentos jornalísticos, recolhidos por nós na colecção de publicações periódicas da Biblioteca Amadeu Amaral do Museu do Folclore do Rio de Janeiro, confirmam que a lenda de Pedro Cem é desde há muito bem conhecida do público brasileiro; uma lenda tradicional no sentido mais amplo do termo, isto é, que integra o património literário escrito e oral da comunidade, independentemente de classes e estratos sociais: «Não se contentam os poetas do sertão em versejar temas famosos, dando-lhes aqui e ali o toque pessoal de sua adaptação, como as lendas tradicionais de José do Telhado, da Donzela Teodora, de Pedro Cem, da Princeza Magalona (estrangeiros) ou de “O Rabicho da Geralda”» (Edigar de Alencar, 1962); e «Nas festas religiosas sempre se encontra um cantador, cercado de curiosos, historiando as guerras de Carlos Magno ou a lenda de Pedro Cem. Nunca falta a bandeja para os oferecimentos de quem ouve os repentistas. É disso que vivem» (Rosina D’Angina, 1975).
[9] Trata-se da versificação de uma lenda gaúcha cujas semelhanças com a temática da lenda de Pedro Cem são evidentes desde o início, aliás como outras narrativas em verso que aqui transcrevemos: «Pretendo contar agora/ com toda simplicidade/ uma história comovente/ passada na antiguidade/ e que serve de lição/ para todo coração/ que não possui caridade.// No Rio Grande do Sul/ residia antigamente/ um rico senhor de terras/ perverso, bruto, inclemente,/ avarento e interesseiro. – O seu Deus era o dinheiro,/ vivia prò mal somente».
[10] Exemplos desses paralelismos inequívocos, que incluem os nomes das personagens e os lugares onde decorre a acção, são, entre muitos outros, estes: «– Para mandar construir um soberbo mausoléu, atalhou Pedro-Sem. Oh! Quero uma obra estupenda! A terra há-de gemer com o peso do mármore! Hei-de gastar parte dos meus tesouros nesse monumento para que se diferencie dos outros e os humilhe com a sua grandeza. E quando os homens passarem por ele dirão: Aqui jaz Pedro-Sem, o homem mais rico que houve!» (Sousa, 1905: p. 11); «Mas hei-de fazer um mausoléu que há-de assombrar o mundo. A terra há-de gemer ao peso do seu mármore e do seu ouro. Quem por ele passar há-de dizer: Aqui jaz o homem mais rico de Portugal!...» (s.d.: 9). Transcrevemos passagens do primeiro folheto que não são reescritas no segundo porque nos permitem compreender como de um para o outro se verifica a supressão e a condensação de expressões e frases.
[11] Veja-se a versão (melhor: o reconto elaboradíssimo) – que retomará da oralidade sobretudo a estrutura profunda, sendo decerto uma reconstituição baseada em várias versões orais e escritas, e, ao nível da linguagem, pouco mais do que a fórmula de encerramento «Dê qualquer coisinha, dê qualquer coisinha a Pedro Sem, que já teve e agora não tem...», que incluiu um diminutivo muito portuense – transcrita no livro, organizado por Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas da Terra e do Mar (2004: 54-56), a partir da Grande enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
[12] As páginas não estão numeradas.
[13] Sublinhados nossos.