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Caldas Costa, Aline
de. Imaginrio e percepo da paisagem pelo arteso: um olhar sobre as
esculturas de fachadas com platibandas de Fabrcio Kster. Culturas
Populares. Revista Electrnica 5 (julio-diciembre
2007). http://www.culturaspopulares.org/textos5/articulos/caldas.htm ISSN: 1886-5623 Recibido: 28/07/07 Aceptado: 20/11/07 |
Imaginrio e percepo da
paisagem pelo arteso:
um olhar sobre as esculturas de
fachadas com platibandas de Fabrcio Kster*
Aline de Caldas Costa
Universidade Estadual de Santa Cruz
(Ilhus, Bahia, Brasil)
Resumo:
Este trabalho rene uma reflexo sobre
cultura, meio ambiente e turismo, visando a relacionar aspectos que reportam
conservao do patrimnio - no sentido de proteger, respeitando a dinmica das
identidades culturais - e ao interesse turstico a partir do imaginrio criado
pelo escultor Fabrcio Kster sobre as fachadas de casas com platibandas do
centro histrico de Itabuna. O texto est estruturado em trs partes, constando
um quadro terico interdisciplinar; uma abordagem sobre as construes do
centro histrico de Itabuna, destacando a regulamentao que determinou o uso
de platibandas no incio do sculo XX e, por fim, a apreenso do imaginrio
envolvido no processo de realizao das esculturas sobre as fachadas com
platibandas.
Palavras-chave: cultura – artesanato – patrimnio -
turismo
Abstract:
This work argues
on culture, environment and tourism, aiming at to relate aspects that
preservation of patrimony and to the touristic interest from imaginary created
by the sculptor Fabrcio Kster on the faades of houses with platibandas of
the center historic of Itabuna (BA). The text is structured in tree parts,
consisting a picture theory to interdisciplinary; a boarding on construct of
the center historic of Itabuna, detaching regulates it what determined the use
of platibandas in beginning to the age XX e, for end, to apprehended imaginary
involved in the process of carries through of the sculptures on the faades
with platibandas
Key-words: culture –
handcrafts – patrimony - tourism
Consideraes iniciais
E |
sse estudo tem como objetivo investigar o imaginrio atribudo s
fachadas com platibandas do centro de Itabuna no trabalho do escultor Fabrcio
Kster, considerando as diferentes formas de percepo da paisagem, os
trnsitos culturais e as construes de significados em torno do patrimnio.
Tomando como paisagem os espaos natural e construdo
pelo homem, tem-se que sua percepo acontece de maneira diferente para o
nativo e para o visitante. Segundo Tuan (1977), o visitante apreende traos
estticos, volta-se para o tradicional, para o diferente, enquanto que, para o
nativo, a paisagem vincula-se a significados historicamente construdos.
Nesse trabalho, analisa-se a representao em esculturas
da paisagem urbana, especificamente as fachadas com platibandas do centro da
cidade de Itabuna (BA), feitas por Fabrcio Kster. A escolha do arteso se deu
por conta de seu pioneirismo temtico, pela ampla aceitao do produto por
parte do pblico visitante e pela identificao, percebida pelo autor, da
comunidade nativa com suas obras, ainda que este no seja natural da regio.
Desse modo, como possvel delinear os significados
construdos atravs dos usos do patrimnio para o turismo, considerando as
diferentes apreenses do simblico? Sendo o artesanato parte desse universo,
como acontece a percepo do patrimnio nesse processo de apropriao da
paisagem para esculturas? Considerando que o escultor selecionado no nativo
e que suas peas so consumidas somente pelo o pblico visitante, que aspectos
predominam? O aspecto da esttica ou da significao cultural, caracterstico
da vivncia e interao constante?
O trabalho constitui um estudo de caso, constando de etapas de reviso de literatura e entrevistas semi-estruturadas
(DENCKER, 2001), seguidas de registro fotogrfico das esculturas analisadas e
de fachadas que inspiraram o referido escultor.
Partindo do olhar lanado ao patrimnio pela Nova
Histria (BARRETO, 2000), adota-se, para o desenvolvimento desse trabalho,
elementos tericos voltados para a sustentabilidade socioambiental, tendo como
base os preceitos ecosficos (GUATTARI, 2001).
A
interpretao dos dados levar em conta a apropriao da cultura local como recurso
para a melhoria das
condies sociopolticos e econmicas (YDICE, 2004), para a valorizao da identidade
(HALL, 1999) e promoo do desenvolvimento.
1. Sobre cultura, meio ambiente e turismo
Considera-se o turismo como atividade fundamentada nos deslocamentos
humanos, motivados por questes diversas, que mobilizam ativos econmicos,
culturais e sociais. Entretanto, faz-se necessrio salientar a ultrapassagem
destes limites epistemolgicos em virtude das atuais contribuies oriundas de
disciplinas das Cincias Naturais, bem como da Antropologia, Sociologia,
Histria, entre outras.
Como bem coloca Felix Guatarri em seu ensaio As trs
ecologias (2001), os avanos tcnico-cientficos do
final do sculo XX tiveram ressonncia sobre as relaes sociais, sobre as
relaes dos sujeitos com sua prpria subjetividade e, ainda, sobre a relao
destes com o meio ambiente. Sobretudo, tais avanos geraram um paradoxo em que
figura, de um lado, o potencial da aplicabilidade da cincia na resoluo de
problemas ecolgicos e sociais e, de outro, a dificuldade dos organismos
sociais em obter acesso a esse conhecimento para efetivar uma transformao.
Para o autor, mais do que nunca a natureza no pode ser
separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as
interaes entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referncia sociais e
individuais (GUATARRI, 2001, p. 27). O objetivo a adoo coletiva de novos
complexos de valorao.
Nesse nterim, o autor cunha a noo de ecosofia, propondo a reconstruo tico-poltica dos olhares sobre meio
ambiente, relaes sociais e subjetividade humana, voltada para a reverso do
quadro de deteriorao das condies de desenvolvimento planetrio. Salientando
os novos contextos histricos, Guatarri enfatiza o homem como ponto chave da
questo ambiental.
O mesmo tambm vale para as discusses no mbito da
cultura e do turismo. O homem elemento central, criador de tradies atravs
das quais transmite e reformula a cultura (WARNIER, 2000), assim como a
paisagem (TUAN, 1997) e os deslocamentos entre os diferentes espaos com o
propsito de experimentar hbitos e costumes, semelhanas e diferenas
culturais (WAINBERG, 2003). Desse modo, o turismo encontra-se entre os
elementos influenciadores das culturas, de acordo com as motivaes que
impulsionam o indivduo a viajar e conhecer lugares e culturas diferentes.
Cabe
destacar que a noo de cultura norteadora desse estudo corresponde dos
estudos contemporneos, a qual coloca em nveis equivalentes e com menor rigor
fronteirio o erudito, o massivo e o popular. com base no pensamento
intercultural de Canclini (2004) que se prope o estudo de interconexes entre
paisagem, trnsitos e identidade.
Nessa ocasio, o estudo da apropriao da paisagem
feito em relao ao conceito de patrimnio, visto que esse diz respeito a todo
fazer humano, legitimado socialmente (NORRILD, 2005), constituindo uma
abordagem multidisciplinar. Ainda que reconhecido por um determinado grupo, o
patrimnio cultural tem seus significados recriados pelas geraes, podendo
motivar o desejo pela conservao e/ou ressignificao de bens simblicos.
Tal postura, todavia, depende das condies de
interao, participao nas decises para a conservao e possibilidade de
desenvolvimento socioeconmico a partir dos usos do patrimnio no atual
contexto histrico (ARIZPE & NALDA, 2003). No basta configurar um bem como
patrimnio apenas registrando-o em inventrios ou abordando-o enquanto input
para o turismo cultural, de modo a submeter a
cultura a interesses puramente econmicos. Pelo contrrio, necessrio
estabelecer estratgias para a sustentabilidade
do turismo cultural, visando o bom uso dos recursos ambientais.
A sustentabilidade rene condies de ser o elo na
cadeia de transmisso sobre as qualidades da sociedade/lugar visitado; que
interpreta e respeita a cultura local (SIMES, 2001, s/p). Partindo desse
vis, o turismo pode contribuir para a valorizao e preservao dos bens
simblicos locais, como prope esse estudo sobre as esculturas em madeira das
fachadas com platibandas de Itabuna.
2. Sobre platibandas nas construes do nordeste do Brasil
A arquitetura da regio nordeste do Brasil muito marcada por
traos tpicos das estruturas coloniais, herdando das tradies urbansticas
portuguesas as ruas em traado regular e as construes sobre o alinhamento do
lote, cujas fachadas margeiam os limites dos terrenos. As casas coloniais
possuem cerca de dez metros de fachada e profundidades avantajadas. As ruas,
por sua vez, so definidas pelas frontes das casas. Caladas eram pouco usuais.
H dois tipos predominantes de habitao referente poca colonial, bastante comuns na arquitetura do nordeste brasileiro: a casa trrea e os sobrados. As casas trreas so mais populares. Caracterizavam-se tambm pelo piso de cho batido. Em oposio, as classes economicamente mais favorecidas adotaram o sobrado, o qual, alm de apresentar dois andares, possui piso assoalhado. Ambas apresentam telhados em duas guas, os quais lanam as guas pluviais frente e aos fundos das casas. Para solucionar essa questo, adotou-se calhas e beirais para conduzir a queda das guas a um ponto determinado.
As tentativas de melhorar os padres das edificaes
brasileiras tiveram maior nfase durante o sculo XIX, quando foram registradas
as primeiras regulamentaes de ordem municipal. As posturas funcionavam como
leis que indicavam os parmetros estticos que deveriam ser implantados,
especialmente, no permetro urbano.
O primeiro Cdigo de Posturas brasileiro foi criado em
So Paulo, em 1886 (LEMOS, 1989). O documento listava exigncias para os
frontispcios das edificaes, como as alturas mnimas para fachadas e p
direito, continuidade entre cumeeiras, adoo de platibandas em lugar dos
telhados em meia gua, os quais lanavam as guas pluviais frente e aos
fundos das casas, alm de passeios que tornavam as ruas regulares, visando a
uma harmonia arquitetnica.
O Cdigo de Posturas Municipais da Cidade do Salvador,
datado de 1921, foi publicado em correspondncia a estes objetivos. O documento
determinou a esttica das casas locais e inspirou as construes em cidades do
interior, a exemplo de Itabuna. As construes daquele perodo tinham a fachada
erguida nos limites do lote, sobre o alinhamento das ruas, no se concebendo
casas com jardins. Segundo Reis Filho, essas padronizaes representavam uma
preocupao de carter formal, cuja finalidade era, em grande parte, garantir
para as vilas e cidades brasileiras uma aparncia portuguesa (1978, p. 24), a
qual se manifestava principalmente nas fachadas com platibandas.
O uso de
platibandas foi determinado pela postura de nmero 35:
Fica
proibida a construo ou reconstruo de prdios, assim como a modificao dos frontispcios
os mesmos, com beiras de telhados, nas quais as telhas e biqueiras sejam
aparentes, estendendo-se esta medida s laterais visveis da rua.
Nos
edifcios, cuja forma no seja de chalet, ou construes semelhantes, os telhados devero ser
encobertos por platibandas que encimem as cornijas ou entablamento, sendo as
biqueiras colocadas de forma a no serem vistas exteriormente (p. 19).
Caracterizadas como a parte mais alta da fachada, as platibandas tinham a funo de esconder o telhado, evitar o lanamento de guas pluviais nas ruas e, mais que isso, ornamentar as casas do centro da cidade. Tanto que, as construes desobrigadas de utiliz-las (chalets) deveriam estar situadas, conforme a postura a seguir, de nmero 36, nos arrabaldes, subrbios e em outro lugar qualquer [...], nunca, porm, nos alinhamentos das ruas (p. 20). As platibandas representavam ainda um conjunto de avanos tecnolgicos com o uso de equipamentos importados, incentivados com o processo de abertura dos portos nacionais ao mercado mundial.
O enriquecimento proveniente das monoculturas do
nordeste – a exemplo da cana de acar, em Pernambuco – suscitou o
desejo de afirmao social, o que impulsionou o surgimento de uma diversidade
de ornamentos para as platibandas, mesclando os estilos gtico, neoclssico e
mesmo art nouveau, classificada por Lemos (1989)
como neocolonial. O estilo rene solues inspiradas no passado, que se
popularizaram durante a dcada de 20 e incio da seguinte.
comum encontrar nas cidades de Recife, Natal, Salvador e interior do nordeste prdios pblicos com platibandas adornadas por esculturas de mulheres em loua, guias, simbolizando a independncia e a liberdade, signos reais, conchas barrocas, arcos, balastres. Tambm comum encontrarmos em platibandas o ano em que a construo foi concluda. Um rico acervo de platibandas pode ser apreciado em centros histricos das capitais e cidades histricas do Nordeste. importante citar que a revitalizao dos casarios em centros histricos no Nordeste tem impulsionado o turismo e, por conseqncia, a economia destas cidades, a exemplo de Joo Pessoa, Salvador e cidades do interior, como Ilhus e Canavieiras.
Mais tarde, as platibandas deixaram de ser item dos
cdigos de posturas municipais. Porm, seu uso permaneceu habitual em algumas
regies do nordeste, embora o sudeste do Brasil tenha se modernizado em termos
industriais, refletindo-se na arquitetura. A memria de tempos ureos das
monoculturas no nordeste est viva nos casarios das cidades de referncia.
Porm, no interior, as platibandas so usuais no apenas pela histria, mas por
vnculos de ordem identitria e gosto.
No incio dos anos de 1970, a artista carioca Anna Marianni dedicou-se a fotografar a arquitetura, a cultura, a fauna e a flora, a paisagem e a vida cotidiana nessa regio do Brasil. Em 1976, a fotgrafa enfoca as fachadas e platibandas das casas populares reunindo, em 11 anos de pesquisa, um acervo de mais de 2 mil fotografias. Destas, seleciona 220 fotos e publica o volume Pinturas e Platibandas, com comentrios do escritor Ariano Suassuna e da arquiteta Lina Bo Bardi. O livro lanado na 19 Bienal Internacional de So Paulo com exposio de 80 ampliaes fotogrficas.
Fig 02: Casas com platibandas em Caratac, Bahia.
Fonte: Marianni, 1986
As platibandas so to marcantes na arquitetura nordestina que o livro resultante da pesquisa de Anna Marianni serve de referncia para a cenografia de filmes e minissries para a Televiso, a exemplo de O auto da compadecida (2000) e A pedra do Reino (2007), alm de reforar o interesse popular por esse marco na arquitetura nordestina brasileira.
3. As platibandas em Itabuna (BA)
No Sul da Bahia, a monocultura do
cacau tambm foi responsvel pela adoo de platibandas nas construes que datam
da dcada de 20 at 60.
H no
centro de Itabuna muitas casas erguidas em correspondncia a essas
especificaes, compondo um patrimnio arquitetnico de interesse histrico,
com usos para o comrcio, prestao de servios e administrao. Nas ruas Miguel
Calmon, Paulino Vieira e Duque de Caxias, somente citando algumas, h
edificaes que datam das dcadas de 20, 30 e 60 do sculo XX. Muitas esto em
bom estado de conservao, a exemplo do Museu Casa Verde, ilustrado na figura
03. Algumas abrigam sales de beleza, lojas ou ainda residncias, conquanto
essa funo tenha sido transferida para bairros mais distantes do centro, em
busca de espao e silncio (BERTOL; ROCHA, 2005).
Fig 03: Exemplo de construo com platibanda Rua
Miguel Calmon, centro, Itabuna. Atual Museu Casa Verde. Fonte: Aline de
Caldas, 2006
Importa salientar tambm que grande nmero dessas construes encontra-se em situao de risco, como a ilustrada na figura 04, cujo interior foi demolido. A figura mostra casas com platibanda na mesma rua do centro da cidade em bom estado de conservao, mas que poderiam receber uma pintura que valorizasse os detalhes da ornamentao.
Fig 04: Casas com platibanda em pssimo estado de
conservao, cujo interior foi demolido.
Fonte: Aline de Caldas,
2006
Fig 05: Casas com platibanda em bom estado de
conservao.
Fonte: Aline de Caldas, 2006
O projeto Levantamento do Patrimnio Histrico-Cultural da rea de Insero da Universidade Estadual de Santa Cruz (MACEDOa; MACEDOb; ANDRADE, 2000) inclui em seu relatrio a casa que pertenceu ao Professor Ewerton Alves Challoupp, que data de 1924, situada Rua Miguel Calmon, n 157 (fig 06) e o sobrado da Sr. Alade Marques Leo, em estilo arquitetnico neoclssico europeu, localizado Rua Baro do Rio Branco, n 19 (Fig 07).
Fig 06: Casa que pertenceu a Ewerton Alves
Challoupp Fig 07: Sobrado da Sr.
Alade Marques Leo.
Fonte: Aline de
Caldas Fonte:
Aline de Caldas
Porm, o
levantamento realizado para o referido projeto resume a paisagem da arquitetura
histrica itabunense a dois itens, apontando para o que diz Rocha:
O centro
histrico de Itabuna um lugar pouco cuidado, pouco conhecido e pouco falado,
dando a impresso de que nunca existiu. Obviamente Itabuna possui um lugar especfico
onde a cidade comeou, onde ainda existem muitos resqucios do passado, porm
no h nenhum programa que tente revitalizar ou conservar esse centro (ROCHA,
2005, p. 64).
A autora
coloca uma preocupao que ultrapassa a razo histrica, marcada pelos significados
de um passado cultural, para chegar ao vis tico-poltico da questo.
Conservar caracteriza conhecer, respeitar e proteger o patrimnio, compondo o
que tem sido chamado de capital cultural (Canclini,
2003, p. 193). Nesse sentido, o patrimnio, visto como processo social,
acumula-se, reestrutura-se, produz rendimentos e apropriado de maneira
desigual por diversos setores (op. cit.), colocando os sentidos na constante
dinmica da reconstruo social.
nesse
processo de apropriao que os significados se renovam e possibilitam
direcionar o olhar para aspectos antes considerados irrelevantes, mesmo
invisveis da cultura local. Vejamos no prximo item como o legado
arquitetnico do centro de Itabuna despertou o olhar e o interesse do escultor
Fabrcio Kster para essas questes.
3. Do real representao
Fabrcio Kster natural de Vitria
(ES), tendo vivido sua infncia numa pequena vila de pescadores chamada Nova
Almeida, balnerio do litoral norte do municpio Serra, situada a 28 km da
capital.
Em 2001,
Fabrcio escolheu a regio cacaueira para viver. Transferiu-se para um stio
rodeado por roas de cacau, situado margem esquerda do rio Cachoeira –
signo identitrio da cultura itabunense. O arteso j conhecia a regio, tendo
vivido parte de sua adolescncia em Itabuna. Seu interesse pela cultura local
se intensificou quando, a caminho da Fundao onde lecionava artes plsticas
para crianas carentes, observou o centro da cidade, comparando-o paisagem de
sua terra natal.
L em
minha terra, s as casas mais antigas tinham platibanda, feitas com paredes de
pedra e cal. Quando alguma delas era reformada, esse trao era eliminado e se
construa alguma coisa no estilo europeu, de telhado vista e varanda. Elas
eram descaracterizadas. Aqui eu vi fachadas simples e bonitas. Mesmo quando
essas casas so reformadas, no se extinguem as platibandas, ao contrrio, as
valorizam. um trao forte da gente daqui at hoje. Ento eu resolvi
experimentar esculpir essas casas em madeira[1]
Tal relato encontra-se relacionado a motivaes de ordem imaginria, um mundo histrico e social de criao incessante e essencialmente indeterminada de figuras, formas e imagens (CASTORIADIS, 1982). De acordo com Castoriadis, imaginrio sinnimo de coisa inventada,
quer se
trate de uma inveno absoluta (uma histria imaginada em todas as suas
partes), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde smbolos j
disponveis so investidos de outras significaes que no suas significaes
normais ou cannicas (p. 154).
Desse
modo, o que institudo encontra-se entrelaado
ao simblico. Ao observar o conjunto arquitetnico do centro da cidade,
acredita-se que o escultor colocou em interao os trs atos do fingir,
conforme coloca Iser (1997) em sua teoria do imaginrio. A seleo, combinao e o desnudamento so intencionais, constituem transgresso de limites e do forma ao
imaginrio.
O ato de seleo
se refere a campos de referncias extratextuais,
nos quais se recolhe elementos que, recombinados, inventaro novas formas,
ganharo novos valores e colocaro em destaque os elementos ausentes, sem
perder a ligao ao contexto original. Esse primeiro ato de fingir transforma
sistemas de organizao scio-culturais, tomados como realidade, em objeto da
percepo.
O segundo
ato de fingir, a combinao, atua junto
denotao e representao. Os agrupamentos de significados ressaltam
diferentes perspectivas, alcanando tambm o mbito dos personagens envolvidos.
O ato de desnudamento
consiste na formao de um mundo do como se, um mundo posto entre parnteses, para que se entenda que o mundo
representado no o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se o
fosse (p. 24). a interao destes atos de fingir que permite a compreenso
de uma obra ficcional, artstica, como uma realidade. O imaginrio aponta para
um real atravs de instrumentos fictcios, enfatizando com elementos
selecionados de outros textos aquilo que est ausente.
Desse modo, ao se apropriar da paisagem do centro histrico de Itabuna para concretizar suas esculturas, Fabrcio Kster pe em ao os atos de fingir, caracterizando uma leitura particular do patrimnio local, recorrendo sua memria, vivncias e imaginao, como se explicita na colocao a seguir:
Eu acho
que a platibanda tem o mesmo significado do chapu usado pelos homens. Num
tempo, se faltasse, era como se estivessem nus. Imagine o chapu, as
sobrancelhas e os olhos. Esse conjunto expressa algo e significa algo. As
platibandas tambm so assim. Elas significam e expressam. At os prdios daqui
tm platibandas. Pra qu esconder o telhado de um prdio? mesmo um trao
cultural. [2]
O
trabalho do arteso tem ampla ligao com o tradicional, privilegiando os
aspectos de casas de morada e as funes de bares e mercearias, como se observa
nas ilustraes a seguir.
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Fig 08: Escultura inspirada em fachada da casa da
figura 04. Fonte: Aline de Caldas |
Fig 09: Escultura inspirada na fachada da casa da
figura 05. Fonte: Aline de Caldas |
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Fig 10: Escultura inspirada na fachada
casa da figura 07 Fig 11: Destaque para platibanda ornamentada com
indicao do ano da construo (1924) Fonte: Aline de Caldas |
A adoo
dessa esttica atrai tambm o olhar do turista, reportando ao estudo de Tuan
(1980). Contudo, vale ressaltar que a insero do escultor no contexto local proporcionou-lhe
vivncia e interao com as referncias identitrias da cidade. Assim, sua
apropriao dessa paisagem para as esculturas corresponde ao que Ydice chama
de uso da cultura como recurso para a melhoria das condies sociopolticas e econmicas
(2004, p. 25), suscitando o interesse de colecionadores, turistas e nativos pela
cultura local atravs de pgina na internet.
As
esculturas do escultor tambm evidenciam um trao da paisagem local ainda inexplorado
pelo municpio para o turismo e que, at o momento, somente a comunidade rene
esforos para conservar.
Em visita recente ao municpio, uma equipe composta por arquiteto, urbanista e historiador se dedicou a observar a potencialidade da rua Paulino Vieira para a implementao do projeto Shopping a cu aberto, que visa a intensificar o comrcio e o turismo de negcios em Itabuna. De acordo com a gerente regional do Sebrae, a equipe permaneceu neste espao durante uma semana,
conversando
com pessoas que passavam na rua, com pessoas antigas da cidade, observando as
lojas, as vitrines at achegarem a um projeto conceitual para a Paulino Vieira,
no qual se traduz a questo de um espao de elegncia, em que se tem, um
conjunto de prdios antigos muito bonitos e que o projeto vai destacar,
ampliando esse ar do chique, do elegante, do tradicional. [3]
O que se
pretende buscar recursos junto ao Ministrio do Turismo para implementar um
projeto integrado, onde so parceiros setor pblico, setor privado e terceiro
setor, reunindo aspectos da cultura local, da paisagem existente, do perfil
econmico da cidade para fomentar o desenvolvimento.
Consideraes finais
De acordo com os dados reunidos,
constata-se que Fabrcio Kster constri seu trabalho operacionando os atos de
fingir que instauram uma realidade imaginria, com base no patrimnio
arquitetnico do centro histrico de Itabuna. Pelos atos de seleo e combinao, so reunidos recortes
da memria do arteso, das influncias dos deslocamentos vividos, das
referncias simblicas das diferentes paisagens relacionadas, os quais permitem
o desnudamento, ou seja, a realizao do
textoescultura.
Ocorre
nesse trabalho o entrelaamento de aspectos ligados diferena (WAINBERG,
2003), acentuada pelo olhar esttico e pela interao de culturas num ambiente
hbrido, em que coexistem elementos tradicionais, populares, conhecimentos especficos
e informaes veiculadas em massa (CANCLINI, 2003). Desse modo, o aspecto que
prevalece no trabalho do escultor estudado o da interculturalidade, a qual implica que os diferentes so o que so, em relaes de
negociao, conflitos e emprstimos recprocos (CANCLINI, 2005, p. 17), que
vo resultar em curiosidade pela cultura local, despertando o olhar e o
interesse turstico para a regio.
O
trabalho de Fabrcio cria outra dimenso para as platibandas itabunenses e,
conseqentemente, uma releitura do meio ambiente desprezado, criando uma outra perspectiva
para a paisagem a partir do fazer artstico que suscita o interesse e o potencial
turstico do municpio. Contudo, ainda necessrio que se rena as condies mnimas
de planejamento do turismo para que esse conjunto patrimonial possa, de fato, se
constituir em atrativo turstico.
A
importncia de um pensamento ecosfico est na necessidade de realizar uma reconstruo
dos olhares sobre o patrimnio local. Tomado no sentido material (conjunto
arquitetnico estudado), essa transformao estaria voltada para a instaurao de
um trabalho de gesto do conhecimento histrico; elaborao polticas pblicas voltadas
para revitalizao, proteo e conservao desse patrimnio, respeitando a dinmica
das identidades culturais. No sentido imaterial, (saberes e fazeres inspirados pela
paisagem local), faz-se necessrio intervir de modo a difundir e promover o arteso,
visando a fomentar um turismo cultural que possibilite a sustentabilidade.
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Henriette Jeanne Kremer. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
WAINBERG, Jacques Alkal. Comunicao e turismo: a indstria da
diferena. So Paulo: Contexto, 2003.
* Trabalho realizado em cumprimento disciplina Cultura, meio
ambiente e turismo, ministrada pela Prof. Dr. Maria de Lourdes Netto Simes e
pelo Prof. Dr. Salvador Dal Pozzo Trevisan, no mestrado em Cultura &
Turismo da Universidade Estadual de Santa Cruz. 2006.1
[1] Entrevista concedida em 14 de junho de 2006, em Ilhus, BA.
[2] Op. cit.
[3] Entrevista com
Adriana Moura Bonifcio, gerente regional do Sebrae em Itabuna. Itabuna, 19
de janeiro
de 2007.