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Nogueira, Carlos. A stira em poetas popularizantes e populares portugueses (de Joo de Deus a Antnio Aleixo). Culturas Populares. Revista Electrnica 3 (septiembre-diciembre 2006). http://www.culturaspopulares.org/textos3/articulos/nogueira1.htm ISSN: 1886-5623 |
A stira em poetas popularizantes e populares portugueses (de Joo de
Deus a Antnio Aleixo)
Carlos Nogueira
Resumo
Analisamos neste
artigo a stira na poesia de Joo de Deus e Augusto Gil, luz do conceito de
popularizante ou de popularismo esttico, e, entre outros, de Antnio Aleixo,
para o que convocamos o conceito de popular tradicionalista.
Palavras-chave: Poesia, culto / popular, stira
Abstract
This
paper analyses the satire in the poetry of Joo de Deus and Augusto Gil,
characterizing their aesthetics as having a popular like character. It also
considers the popular poetry of
Antnio
Aleixo, this one situated in a traditional style trend.
Keywords: Poetry; cult / popular;
satire.
J |
oo de Deus tem sido sobretudo
valorizado como poeta de um lirismo puro, cristalino, que se consubstancia numa
expressividade prosdica, num imagtica, num metaforismo e num lxico
radicados, antes de mais, numa desafectao geralmente conotada com
simplicidade e espontaneidade, tonalidades, contudo, como bem notaram Costa
Pimpo e, com ele, David Mouro-Ferreira[1], porventura muito
mais aparentes do que reais. O que o autor da Cartilha Maternal desde logo traz de
novo, que o mesmo dizer o que cumulativamente lhe proporciona um lugar em
tudo parte na poesia do seu tempo, o afastamento de qualquer declamao
presunosa e a adeso a uma potica popular, oral ou de inspirao popular e
tradicional. Donde podermos falar no rejuvenescimento do lirismo pela
dialctica entre a intimidade do poeta que procura uma notao precisa de
ambientes e personagens e uma naturalidade muito pensada que se reveste da
pigmentao de sinceridade reconhecida ao patrimnio literrio oral.
Em autonomia
irrestrita relativamente ao cruzamento de escolas literrias que marcam o nosso
panorama oitocentista, Joo de Deus pratica pois uma stira resolutamente
antioratria, inscrita numa matriz oral popular de lastro vocabular pouco
variado, caracterstica alis comum a toda a sua lrica. Tal formulao
tcnico-discursiva no significa todavia a categrica petrificao de cada
texto e do macrotexto. Dos circuitos do poema desprende-se uma irradiao
cantante e encantatria atravs da qual Joo de Deus entronca de imediato na
melhor tradio do repentismo portugus. O sortilgio da produo satrica do
poeta encontra-se na combinao da voz do cantador popular com a letra
impressa, na engenharia estilstica de repeties, interrogaes, exclamaes,
anacolutos, trocadilhos, plebesmos, populismos, coloquialismos, sintaxes
elementares, simetrias e dissimetrias, na, numa palavra, fluncia discursiva
que vem directamente da linguagem quotidiana e prosaica.
Os acordes dessa
suposta expresso directa de pensamentos, sentimentos e emoes retinem nos
diversos vigamentos mtricos e nos mltiplos esquemas estrfico-rimticos,
desde a maior sofisticao da oitava decassilbica e do soneto at maior
singeleza da quadra, de cuja brevidade e aparente escassez de recursos procede
a sensao de improviso daquela que a estrutura poemtica por excelncia do
povo (entendido aqui num sentido muito amplo) portugus. Essa diversidade de
formas previne em grande medida a displicncia e a insipidez que afectam todos
aqueles que no sabem servir-se com destreza da tecnologia da oralidade. O tom
de performance oral torna o poema mais real e genuno, potenciando a relativa
riqueza de temas de um poeta que se quer especialista da vox populi, agente, por
conseguinte, que d congruncia cognitiva e emocional experincia individual
e colectiva: um bardo, como confessa nas suas Prosas, epteto com que
Joo de Deus tambm logo salienta que o que o mobiliza no um iderio
poltico-social e cultural construdo atravs de um intenso labor intelectual,
maneira da gerao de 65, mas uma panormica da sociedade portuguesa baseada
em observaes flagrantemente sagazes.
, no mnimo, um
erro grosseiro exigir de Joo de Deus aquilo que ele nunca procurou nas suas 96
(ou 102, se contabilizarmos como um texto autnomo cada uma as 6 variaes em
133 quadras de Uma mo de variaes e cada um dos dois blocos do poemeto
Marmelada) peas satricas publicadas no Campo de Flores (1893): uma
teoria, ndices inequvocos de actualizao cultural e anlise crtica em
profundidade. Mas daqui no se deduza que as suas stiras e epigramas e os seus
poemetos se esgotam no estritamente circunstancial e anedtico. Se verdade
que essas categorias constituem com frequncia o primeiro revestimento do
poema, no menos claro que s uma leitura muito apressada e preconceituosa
poder ignorar quer a j referida engenhosa capacidade verbal quer a franqueza
de quem oferece, se no ideias ou, sobretudo, solues, pelo menos factos
reconhecidamente substanciais; uma pequena cartilha do mais acendrado civismo[2], na excelente
frmula de Vitorino Nemsio, estudioso que percebe como poucos a originalidade
da obra deste mestre do discurso oral, interventivo, que agita, incomoda,
suscita reflexes, controvrsias, simpatias e dios. Poesia e moral, oralidade
e escrita: eis os pares dialcticos que estruturam uma stira manifestamente
mais comunicativa e universal do que muita da poesia panfletria sua coetnea.
Mau grado a
incompreenso de um certo senso comum e de certos crticos face a um estilo e a
um esprito jogralescos, face, em especial, a alguma linguagem mais vulgar[3] (nas duas quadras
do soneto Balo, por exemplo, l-se: Quando vejo uma lesma empavonada,/ Vir
de saia-balo toda espavento,/ E as velas todas desfraldando ao vento,/ De
vento em popa reduzir-se a nada:// Lembra-me ver sardinha alcachofrada/
Apostrofando ao hmido elemento/ Que alargue um pouco... quer tomar assento.../
Arrotando-lhe postas de pescada![4]), a stira de Joo
de Deus expanso em formas dinmicas que inventam o futuro a partir do
presente mais imediato, tanto nos referentes convocados como na matria verbal
que os corporiza em tecido potico. Nesta memria-poesia, a inventividade
ldica atravs da qual o poeta revela o seu carcter social no turva a
intensidade de nveis de pensamento e sentimento que so demanda criadora e
polmica de horizontes imprevistos de sentido e autenticidade. Do estmulo
rtmico imediato, do sabor da sugesto auditiva, vem a relao do ouvido potico
com a fala quotidiana, e a centralidade da equao pessoalidade / sinceridade,
indispensvel numa poesia que nada rejeita como seu objecto (lembremos o
suplemento de distribuio gratuita Cryptinas, que agrega poemas satricos
de molde fescenino, incorporado na edio de 1897, a que Tefilo Braga ape o
rtulo, quer dizer, o estigma, de poesias de leitura restrita).
Sem de modo algum corresponder, como se sabe, a um
militante activo da Questo Coimbr, Joo de Deus considerado um dos seus
homens, ou um seu precursor, se pensarmos nas stiras impessoais, veementes e
objectivas que, desde cedo, da sua tribuna estudantil, enderea ao ambiente
acadmico, religioso, cultural e poltico-social do seu pas. No seu primeiro
texto publicado, A Lata (1860), poemeto com 60
estrofes em oitava rima de eco camoniano e verso decasslabo, a retrica
aplicada, tanto a estritamente lingustica como a ideolgico-poltica, aproxima
a obra do tom declarativo, dramatizante e apostrofante caracterstico dos
poetas da escola de Coimbra: E esses lobos que em duas patas andam/ Para ter
sempre em guarda as outras duas;/ Que a monte saem s, e s debandam/ Como os
ladres, noite, pelas ruas;/ A empecer que os nimos se expandam,/ Que a luz
se espalhe, e que as imagens tuas,/ Bom Deus! de imagens passem... e que
admira/ Sem o sopro que ao barro a vida inspira![5].
Mas j neste poema anticlerical que discute o problema do celibato e louva as
virtudes femininas (da me, da esposa), a ironia, o burlesco e o sarcasmo
constituem os instrumentos, como que radicados na vida psquica e pragmtica
comunitria, com que o poeta mostra no ser o seu caminho o da linguagem
potica preestabelecida: Foi esta ao menos a resposta dada/ A quem de padres
entendia tanto,/ Que inda os fulgores dessa luz sagrada/ A Brandes mesmo metem pejo e espanto:/ Deixai que o padre tenha esposa amada!/
Gritava em Trento o arcebispo santo;/ Quando um finrio, que j santo, ao
ouvido/ Lhe disse: – Muitas melhor partido –[6].
Joo de Deus corrige-se entretanto no sentido da expurgao
desse arroubamento veiculado de modo algo solenizante, patente, desde logo, na
publicao, em 1868, do longo poemeto Marmelada, que invectiva, em geis
quadras heptassilbicas de porte
repentista, o ex-frade crzio e professor de Dogmtica Vitorino da Conceio
Teixeira Neves Rebelo, apodado pelos estudantes de Doutor Marmelada, devido
s suas falas melfluas e, alegadamente, sua incompetncia: Marmelada,
Marmelada!/ Antes c melhor viera/ Quem te mandou: pois no era?/ Tu disto no
pescas nada!// [...]// No dizes seno asneiras,/ E ainda em cima botando/ Teu
R de vez em quando!/ H maior impertinncia?[7].
Os poemas, j o dissemos, so os de um perito da memria que comenta paradigmas
segundo os quais a comunidade deve organizar-se, metabolizando, pela sua
prpria linguagem, o pensamento individual de cada elemento do colectivo.
Os temas evocam e articulam problemas da experincia do
mundo partilhado. De entre os vrios textos de interveno sociopoltica, e sem
querermos, obviamente, enumerar e comentar todos os poemas de qualidade,
isolamos aqui dois que consideramos de grande nvel: O dinheiro, porventura a
stira que mais contribui para que se identifique e reifique Joo de Deus com a
categoria de (do) poeta popular apto a usar no s a linguagem da persuaso mas
tambm a da demonstrao (O dinheiro to bonito,/ To bonito, o magano!/
Tem tanta graa o maldito,/ Tem tanto chiste o ladro!/ O falar, fala de
modo.../ Todo ele, aquele todo.../ E elas acham-no to guapo!/ Velhinha ou moa
que veja,/ Por mais esquiva que seja,/ Tlim!/
Papo.// [...]// Aquela fisionomia/ E lbia que o demo tem!/ Mas numa
secretaria/ A que v-lo bem!/ Quando ele de grande gala,/ Entra o ministro
na sala,/ Aproveita a ocasio:/ Conhece este amigo antigo?/ – Oh meu to
antigo amigo!/ (Tlim!)/ Pois no![8]),
e A monarquia, com a sua antfrase apuradamente operativa (Andam a dizer mal
da monarquia,/ Mas sem razo, falemos a verdade;/ Porque aos bons ningum d
mais garantia/ Nem pune aos maus com mais severidade.// Nunca paixes de certa
qualidade/ Prevaleceram contra o que cumpria,/ Nem consta que inspirasse a
iniquidade/ Despacho, lei, decreto ou portaria!// H setecentos anos
simplesmente/ Que este sistema nos governa, e vede/ Comrcio, indstria, tudo
florescente.// Os caminhos de ferro uma rede!/ E quanto a instruo, toda
esta gente/ Faz riscos de carvo numa parede[9]).
A sua actividade de pedagogo expressa-se directa ou
indirectamente em mltiplos textos sobre vocabulrio, ortografia e pedagogia:
avulta, por exemplo, na extensa stira Uma mo de variaes, que trata
especificamente de mtodos de leitura, atravs de um bem urdido acometimento
(de trama burlesca, envolvendo deuses da mitologia clssica) sobre um dos seus
contendores na matria, a que o subttulo – Sobre a teima do maestro
Cirne – confere desde o incio o necessrio enfoque.
Para alm daqueles veios temticos mais
salientes, a stira de Joo de Deus dispersa-se ainda por outros ncleos
cruciais (imperfeies de um pas convencional, inculto, burocrtico e
agrcola), como os desgastados padres retrico-literrios (o humor do poema
Rimas reverte em sensata e instrutiva reflexo sobre a liberdade potica:
Meu amigo Silva Gaio,/ Em rimas no sobressaio,/ Mormente rimas em aio;/ Mas dcil como um lacaio/ Aos deveres que
contraio,/ Aos quais nunca me subtraio,/ Saiba que montei no baio/ Que pgaso
em que saio,/ E porta do Gil Malaio,/ Indo a passar de soslaio,/ Bispa aveia
num balaio,/ Avana-se como um raio,/ No solavanco descaio/ E com tal fora
retraio/ As rdeas, que as parto e caio!/ [...]/ Adeus! que vou ao ensaio./
Lisboa, trinta de maio./ Seu do corao,/ Sampaio[10]);
o sentimentalismo ultra-romntico (na glosa Ao neto das minhas tias, por exemplo: Dezasseis tbuas no tecto,/
Quatro vidros cada porta,/ Sinal de bens de mo morta,/ Sinal de criado preto;/
Arrastar a vida inquieto,/ Cantar como Jeremias,/ Ou deslindar fidalguias/ De
genealgico arbusto,/ So coisas que metem susto/ Ao neto das minhas tias[11]);
a maledicncia tpica dos portugueses, perdidos na desconfiana de quem nada ou
pouco faz ou cria, de quem apenas condena a partir da segurana e do marasmo do
caf, dicacidade que pontifica nos compadres da pitoresca stira dos
Caturras; o vcio dos jogos de sorte; a falta de hbitos de higiene; a
venalidade dos jornais; as crendices populares ou o gosto ocioso pela
celebrao de qualquer efemride; os excessos nobilirquicos e a hipocrisia dos
valores e costumes burgueses.
O legado de Joo de Deus, no lirismo
candidamente intimista, afectivo e melanclico, repassado a espaos de um
comovido humanitarismo romntico, como no lirismo epigramtico e satrico de,
nas duas vertentes, inspirao oral, popular, tradicional, tem um reputado
epgono em Augusto Gil, que alis faz questo de salientar o ascendente
recebido nas dedicatrias de duas das suas obras: no seu livro de estreia, Musa
Crula, escrito entre 1891 e
1893, e publicado no ano seguinte, e, vinte e dois anos mais tarde, na Sombra
de Fumo, aqui com um
substancial acrscimo de solenidade que vem da epgrafe, decalcada em Dante[12],
Tu duca, tu signore, tu maestro.
Mau grado o seu estatuto de republicano militante, Augusto
Gil praticamente no adere poesia de interveno social, seja na modalidade
de panfletarismo satrico seja na de panfletarismo elegaco e melanclico[13],
o que significa que permanece vlida para o conjunto dos seus livros a doutrina
potica preconizada no poema de abertura, Profisso de f, da sua primeira
obra: No vo pensar que a minha musa seja/ Alguma apario alucinante/ De
olhar azul e lbios de cereja,/ Diadema doiro e espada flamejante.// A musa
protectora destes versos/ Detesta a rima altiva dos panfletos,/ Educa-me em
princpios bem diversos:/ L-me Petrarca, o mestre os sonetos.// No me ensina
a cantar imprecaes/ Contra as torpes gangrenas mundanais,/ Inspira-me somente
estas canes/ Que vos falam de amor – e nada mais[14].
A um programa (romntico) de substncias e intencionalidades confessionais
correspondem, pois, princpios formais de essncia clssica, no que se recusa
qualquer inclinao pretensiosamente aristocrtica, esteticista e antimimtica,
na sequncia alis do manifesto preambular e epigrfico colhido em Ea de
Queirs: Para fielmente contar o que sinceramente sente, no so necessrias
ao poeta essas formas novas que devem rutilar de inauditismo[15]. Em 1919,
no no menos lcido prefcio (acrescido, de resto, de uma maturidade que vem
das experincias vivenciais e literrias do poeta processadas ao longo de vinte
e cinco anos) de autocrtica retrospectiva que acompanha a segunda edio dos
seus Versos (1898), Augusto Gil refere-se, contudo,
como marca das suas primeiras obras, a uma certa artificialidade, prpria do
sincretismo literrio coimbro dos anos 90. Na stira, esse cruzamento de
influncias, com diversos graus de assimilao, do Realismo-Naturalismo ao
Neo-Romantismo de sentido lusitanista e ruralista (denominao usada por Jos
Carlos Seabra Pereira), do Parnasianismo ao Decadentismo-Simbolismo, prolonga-se
para l do ponto de viragem prescrito nesse texto de sntese esttica. A
misantropia ironicamente descrente e escarninha do poema Tarde aziaga, que
assume um certo pendor realista de confisso e descrio urbana Cesrio
Verde, nos seus caractersticos quartetos decassilbicos, com alguns rasgos
baudelairianos tanto no plano semntico-pragmtico (nas bizarrias satnicas que
deformam humorstica e funebremente o real, na revolta contra o grotesco e o
aviltamento sociais) como no plano das novas aquisies tcnicas (na expresso
musical de apuro contidamente parnasiano e verlainiano, a qual aproveita deste
formalismo o rigor analista no levantamento do pormenor concreto do dia-a-dia)[16],
todo esse registo temtico-formal, dizamos, atravessa tambm, na Avena
Rstica, de 1927, as composies A confisso irnica
dum sentimental ou Per amica silentia (Em dbil toada e com sopro enfermo/
Distraio-me a tocar frauta de cana/ Para encurtar as longas horas do ermo/ Com
que a minhalma tmida se irmana.// [...]// Neste tumulto dissonante e rudo/ E
nesta vil charrice engalanada/ Onde qualquer medocre chega a tudo,/ – Eu
sinto a doce glria de ser nada...// Alcunham-se os besouros de guias reais!/
Se a luz do sol o acusa e alumia,/ Pretende ter fulguraes astrais/ O lixo
erguido pela ventania...// No temo a fria de improprios vos/ Quando, no fim
dos fins, tudo soobre./ Esto limpas de culpa as minhas mos!/ – Abro-as
e mostro a minha avena pobre...[17]).
Este rasto de fcil reconhecimento no impede todavia uma
evoluo que j se pressente no volume dos Versos,
particularmente no poema amoroso de circunstncia e denteado satrico Art.
1056 do cdigo civil (Oia, vizinha: o melhor/ combinarmos o modo/ De
acabar com este amor/ Que me toma o tempo todo.// Passo os meus dias a v-la/
Bordar ao p da sacada./ No me tiro da janela/ No leio, no fao nada...//
[...]// Ao diabo mando as leis/ Com excepo dum artigo: O mil e cinquenta e
seis.../ Quer conhec-lo? Eu lho digo:// Casamento um contrato/ Perptuo. Este adjectivo/ Transmuda o
mais lindo pacto/ No assunto mais repulsivo.// Perptuo! Repare bem/ Que artigo cheio de puas./ Ainda se no fosse alm/ Duma
semana, ou de duas...// Olhe: tivesse eu mandato/ De legislar e poria:/
Casamento um contrato/ Duma hora – at um dia...// Mas no tenho.
pois melhor/ Combinarmos algum modo/ De acabar com este amor/ Que me toma o
tempo todo[18]), no
sentido de uma seleco de contedos e formas, aliviada de injunes epocais.
Em Luar de Janeiro, de 1909, um poema como
Meditaes sobre temas do Eclesiastes, constitudo por seis seces que, nas
palavras de scar Lopes, modulam a velha sabedoria salomnica num ar falado,
sarcstico ou corriqueiro[19],
anlise a que conviria acrescentar o gosto discreto por um certo requinte
lexical, sintagmtico e versificatrio (Semeador de iniquidades,/ Por que
que mandas sobre os teus iguais?!/ O mando o que ? Vaidade de vaidades,/ Fumo que ao desfazer-se alarga mais...// Oh minha vista o que que
foi que viste/ C neste mundo impiedoso e rudo?// Que s a vaidade existe/ – Em todos ns, e em tudo!...[20])
e por uma certa elaborao espacial da mancha grfica (na disposio dos versos
nas estrofes e na articulao entre elas, mais direita ou mais esquerda),
ou uma composio como De profundis clamavi ad te domine, que ao discurso da
melancolia coliga uma brusca mordacidade religiosa (Ao charco mais escuso e
mais imundo/ Chega uma hora no correr do dia/ Em que um raio de sol, claro e
jucundo,/ O visita, o alegra, o alumia;// Pois eu, nesta desgraa em que me
afundo,/ Nesta contnua e intrmina agonia,/ Nem tenho uma hora s dessa
alegria/ Que chega s coisas mais nfimas do mundo!...// Deus meu, acaso a roda
do destino/ A movimentam vossas mos leais/ Num aceno impulsivo e repentino,//
Sem que na cega turbulncia a domem?!/ Senhor! No um seixo o que esmagais;/
Olhai que – o corao dum homem!...[21]),
alternam com uma produo de grande pblico inspirada na poesia oral popular
cancioneril de tema (real ou parodicamente) sentimental. A mundividncia de
Augusto Gil tem a, alis, uma das suas principais obsesses semnticas. Desde
o seu segundo livro, com efeito, que se prenuncia o tom induzidamente misgino,
escarnecedor e grosseiro pronunciado nessa obra singular, percorrida por um
indelvel pathos passional e ertico-sexual, que O
Canto da Cigarra (Stiras s Mulheres), a que a
crtica poucas vezes tem outorgado aqueles que so certamente, do ponto de
vista antropolgico e ontolgico, os seus crditos de maior merecimento: o
cinismo e o descaro impressivamente humanos, a respirao sobressaltada de um
homem que se preserva no impulso de coaco do outro, a disperso de um corpo e
de uma alma que procuram fundir-se numa mesma unidade.
No prefcio, datado de Novembro de 1909, a essa obra, o
poeta imputa o antifeminismo que nela transparece, muito atenuado nas obras
subsequentes, a um acesso de bulimia cientfica em que devorei a esmo, numa
pressa voraz e sem a imprescindvel mastigao crtica, quanto de maior se dava
estampa[22], culminando
essas leituras com La Donna Delinquente de
Lombroso. Como quer que seja, parece bvio que a consequncia prtica de tal
bibliografia numa coleco que, literariamente, para l de algum mau gosto e de
alguma monotonia remtica de que tambm enferma, assimila do hipotexto oral a
sensibilidade transindividual e comunitria, provida pela familiaridade da
liquidez das formas prosdicas, das imagens e da linguagem (expresses e versos
formulsticos do cancioneiro popular, expresses idiomticas ou provrbios, por
exemplo), no foi seno a de exacerbar no autor uma misoginia de rdua
superao, porque radicada numa incmoda deficincia fsica (o prprio Augusto
Gil, poeta popularizante, insista-se, que s vezes imita criativamente o melhor
do jeito irrequieto dos cantadores populares, sobretudo dos peritos nos
desafios, o confessa, simulando uma altivez que apenas, provavelmente,
desgosto: ҃ coxo!... disseste a rir./ E sou. Arrasto um dos ps;/ Quero e
no posso fugir/ De crias do teu jaez...[23])
e porventura, dentro da disposio falocntrica to em voga na poca, na
perplexidade reprovadora que lhe suscitam as movimentaes feministas e
sufragistas.
A concluir o mesmo texto preambular, Augusto Gil afirma ter
revisto a sua viso da mulher j depois de escritas as composies de O
Canto da Cigarra, enquadrando aquilo que considera os
inmeros defeitos dela – como a mentira, a dissimulao e a sensualidade
– num contexto que a preserva de qualquer responsabilidade: esses
defeitos v-os como resultantes mecnico-anmicas da subalternidade em que
sempre tem vivido e da generalizada corrupo contempornea. Com irnica
ambiguidade, aps recordar que a legislao mais avanada continua a exercer
sobre a mulher nveis mal disfarados de degradao e servido, o autor observa
que voltei a ser, se no o antigo adorador do eterno feminino, pelo menos um
amigo das mulheres.... Mais: Repeso e contrito, aqui brado urbi et orbe, pela boa de Salomo, que o riso o erro e que vmente o mofador
busca a sabedoria. Logo a seguir, porm, adverte: Mas olhem que no poucas
destas stiras tm algum tanto parecido com o que Eduardo de Artayett vincou
numa imagem de gnio: Rindo, como uma lgrima que endoidecesse[24]. Assim
legitima Augusto Gil, num enunciado agora menos comprometido com a tcnica da captatio
benevolentia, o que para ele, que ri e chora para no
endoidecer, sobretudo da ordem do drama profundamente pessoal. E se certo
que essa misoginia – que no afecta, antes potencia, aqueles momentos em
que o sujeito comunica, implcita ou explicitamente, um desejo (in)tenso de
participar nos prazeres da harmonia conjugal, patente num itinerrio potico
que inclui poemas to significativos como Conselhos... (Corao ambicioso,/
Deixa-a l! Anda comigo.../ Por um amor duvidoso,/ No deixes um bom amigo.//
[...]// O tempo da Minha Dama/ Desfez-se com o passado./ Agora j no se ama/
Seno com bom ordenado...), do livro de 1898[25], ou Um gro
de incenso (Entraste com ar cansado/ Numa igreja fria e triste./ Ajoelhei-me
a teu lado/ – E nem ao menos me viste...// Ficaste a rezar ali,/ Naquela
imensa tristeza./ Rezei tambm, mas a ti,/ – Que aos anjos tambm se
reza...// Ficaste a rezar at/ Manh dentro, manh alta./ Como que tens tanta
f/ – E a caridade te falta?...) e In promptum pastoral (Amar alguma pastora/ Com palavras e com
obras./ Estas senhoras de agora/ So mais falsas do que as cobras...// E ver
criar com carinho,/ Com cuidados infinitos,/ companheira, um filhinho.../ E
s ovelhas, borreguitos...), da obra de 1909[26], – se
essa misoginia, dizamos, parece resolver-se (ou atenuar-se) com o casamento do
poeta em 1912, que com certeza acarreta uma reviso das interrogaes de homem
sobre a sua virilidade, agora que ao objecto feminino de desejo corresponde uma
objectivao inscrita na pauta da conjugalidade, nem por isso deixam de surgir
vestgios da sua persistncia nas ltimas obras, como em O Craveiro da
Janela, de 1920 (– Senhoras, se o que pensais/
Deixasse vestgios claros,/ Os divrcios eram mais/ E os casamentos bem raros[27]),
ou na j mencionada Avena Rstica (em A confisso
irnica dum sentimental: Repugna-me pisar uma formiga;/ E assassinava e punha
num frangalho/ Aquela filha de no sei que diga/ Que ontem beijei – e que
cheirava a alho![28]).
A dicacidade ertica daquela ltima estrofe lembra um pouco
o prosasmo das composies inditas de Augusto Gil, as mesmas que Natlia
Correia destina para a sua Antologia de Poesia Portuguesa Ertica e Satrica, no porque condescenda face ao seu teor de anedota confinada a
especulaes escatolgicas, mas porque lhes corresponde o interesse de
pertencerem a um poeta muito popular[29]
(veja-se a Noite de npcias: Enquanto despia o fraque/ junto do leito do
noivado,/ escapuliu-se-lhe um traque/ de timbre aclarinetado...// A noiva
olhou-o de lado,/ e ps-se, com ar basbaque,/ a remirar o bordado/ das botinas
de duraque...// Houve, aps esse momento,/ naquela noite de gala,/ um duplo
constrangimento.// E o noivo disse-lhe ento:/ Oh filha, cu que no fala/ cu
sem opinio...[30]);
composies, tambm, do gnero das que o prprio autor, num exerccio de
autocensura, ter preferido no integrar nas Stiras s Mulheres, seja porque aquelas de que porventura dispe no as selecciona para
esse livro nem para as obras posteriores, seja porque simplesmente no
reconstitui o conjunto mais ousado que faria parte do manuscrito esquecido num
quarto de hotel (a ser exacto o que divulga no incio do prefcio a O Canto
da Cigarra). Efectivamente, sobre os textos que so
objecto de reconstituio (no mais, no mximo, do que metade do texto
original), diz: escrevi as stiras que adiante imprimo, mas desbastadas,
agora, das suas mais cortantes arestas[31].
Em Augusto Gil – Notas sobre a Sua Vida, a Sua Doena e a Sua Morte. O
Seu Esplio Literrio, Ladislau Patrcio alude
igualmente censura que ele prprio exerce sobre alguns dos inditos do autor
com o qual conviveu pessoalmente: Pertencem a esta fase da doena certos
versos humorsticos que ele me leu um dia galhofando, e que encontro agora
entre os seus papis. Poucas vezes graa mais peregrina ter servido assunto
to ingrato. Silva esotrica para os raros apenas – no se publicam
neste volume[32]. O que
confirma o que se salienta logo na Explicao Prvia: Evidentemente que nem
tudo do referido esplio pode vir a lume; mas aquilo que consiga satisfazer a
curiosidade dos inmeros admiradores do poeta sem comprometer a reputao
deste, entendi que no devia soneg-lo[33].
De entre os textos recolhidos, interessa-nos referir aqueles que Ladislau
Patrcio rene sob o ttulo Os Machacazes (Perfis), caricaturas de agrado
circunstancial e desapiedado, publicadas em jornais, algumas anonimamente ou
com o pseudnimo Jacob-Ino, em que se recorta, em verso correntio, a silhueta
de dez personalidades intelectuais do tempo, a comear pelo extenso Fialho de
Almeida (O dia de um homem de gnio): Lisboa. Actualidade./ Aposento de
hotel/ Forrado de papel.// O mestre dorme com serenidade.// Nisto, um
despertador retine e chama/ Com frenesi, com raiva, com clamor./ O mestre
acorda, senta-se na cama,/ – E pe o resplendor./ Nos vidros entra a luz
deliquescente/ Dum destes dias hibernais, falazes,/ Em que faz sol e chuva
juntamente.// O mestre coa-se; irradia gases;/ V-se num espelhinho de
algibeira;/ Faz a si prprio uma profunda vnia;/ E a seguir dilata as ventas,
cheira.../ – E queima papel da Armnia[34]).
Se, como vemos, o conceito de popularismo
esttico, quer dizer, a adeso e a apropriao da lngua literria oral popular
por parte de um autor dito letrado, culto ou de elite, vlido para o estudo
de Joo de Deus e Augusto Gil, poetas que integram uma consequente tradio
popularizante que atravessa toda a literatura portuguesa, j para um Antnio
Maria Eusbio, um Manuel Alves, ou, um pouco mais tarde, um Antnio Aleixo
– que, neste estudo, para uma anlise algo mais detalhada, elegemos, por
razes bvias (o ser ele uma espcie de instituio nacional e/ou um emblema de
um tipo de cultura e de poesia), como representante do universo literrio que
Joo David Pinto Correia denomina de literatura popular tradicionalista[35]
–, a utensilagem terica deve contemplar um princpio histrico-cultural
que opera desde logo a ciso entre os campos popularizante e tradicionalista: o
conceito de povo enquanto grupo, a que Antnio Aleixo consabidamente pertence,
que ocupa o lugar da subalternidade no sistema de distribuio social das
possibilidades de acesso cultura, riqueza material e imaterial e s
deliberaes sociais efectivas.
No final do sculo XIX e incio do sculo XX, Manuel Alves,
o Cavador, e Antnio Maria Eusbio, o Calafate, constituem dois casos muito
salientes de sucesso junto das camadas da populao ditas populares, de
socializao da palavra potica, por conseguinte, e decerto tambm junto de
cidados da elite letrada, ou no beneficiassem ambos do apreo entusiasmado de
escritores de renome: Toms da Fonseca apresenta o livro do primeiro, Versos
dum Cavador (1900), e Guerra Junqueiro prefacia o do
segundo, Versos do Cantador de Setbal (1901), isto
para alm das palavras de considerao crtica que os dois poetas e cantadores
suscitam a outras importantes personalidades da cultura e da literatura
portuguesas, como Ramalho Ortigo, Tefilo Braga e Afonso Lopes Vieira.
A espcie de aura que se associa a estes
poetas no decorre apenas da habilidade com que executam a tcnica
versificatria, nem muito menos das composies em que celebram temas e motivos
que se exaurem na mais insignificante circunstancialidade (a homenagem a uma
figura de relevo social, o louvor nacionalista ou bairrista, a data festiva,
por exemplo). expresso lmpida e corredia, de verso gil e nervoso, lxico
comum e sintaxe solta, no falta a imponderabilidade de sentidos que a memria
de cada poeta e a memria colectiva fecundam com uma sabedoria que se faz com
experincia humana, reflexo e intuio. O que persiste das suas obras no
portanto a homenagem fcil ou o incidente banal, mas o que nelas pulsa, com uma
criatividade muito inventiva, de construo do futuro poeticamente
problematizado. Se assim no fosse, a redundncia que marca indelevelmente tais
poemas, tanto a dos contedos j amiudadamente convocados como a da potica no
menos reiteradamente compartilhada no patrimnio literrio comunal
(referimo-nos sobretudo ao corpus dos poetas populares tradicionalistas, na terminologia de Joo David
Pinto Correia acima especificada), em vez de caucionar a verdade duradoura e
historicizvel dos textos, no permitiria mais do que a sua inumao sob uma
pesada exausto de palavras. Da idiossincrasia destes criadores, idiossincrasia
muito marcada pelos valores tradicionais, o que mais impera nas formas do
contedo e nos dispositivos retricos e esttico-literrios dos poemas , s
vezes em parceria multidimensional, o conceituoso, o trgico e o satrico. A
coabitao desses vectores ocorre exemplarmente em O meu grito, de Manuel
Alves, poema de acesa interveno contra a monarquia que cruza, desde a
primeira dcima, o dolorido lamento pela decadncia do pas ( qual, como
sobremodo sabido, o Ultimatum ingls confere uma maior visibilidade) com a
denncia circunstanciada dos motivos que conduziram a Ptria a esse abatimento:
Nobre e altivo Portugal,/ Foste outrora o mais valente,/ Hoje to pobre e
doente,/ Imprio feito Hospital!/ Saquearam-te o metal,/ Altos senhores de
cartola,/ Partiu a doirada mola/ chave do teu dinheiro,/ porta do
estrangeiro/ Bates, pedindo esmola.// Tu foste crente e sadio/ Nessas pocas
passadas,/ Hoje, em manhs de geadas,/ Trmulo de fome e frio.../ Esse governo
vadio,/ Essa vil raa mesquinha,/ Vendeu-te raa vizinha/ Como intil para a
vida!/ Tens a existncia perdida,/ Tu, j das naes rainha[36].
Contra a linguagem do poder poltico ergue-se, pois, o poder da stira, com uma
linguagem que se subtrai s clausuras da seriedade hipcrita, uma linguagem que
compromete a fruio da revolta que se afirma no texto com o desiderato de
aco libertadora e correctiva sobre o mundo. Mais frente, no mesmo poema,
com efeito, l-se / ouve-se, um pouco maneira de um esconjuro oral
tradicional, que funciona pelo que se acredita ser, atravs dele, a cura
transcendente: filhos de Portugal,/ Gritai todos a uma voz:/ Abaixo o
governo atroz!/ Abaixo a hoste real!/ Limpemos o lodaal,/ O foco da
epidemia,/ Que de dia para dia/ Nos vai cavando o abismo;/ Guerra crua ao
despotismo!/ Guerra crua monarquia![37].
Preocupaes de justia e de igualdade num
universo social de clivagens, eis, num breve enunciado, o que mais move
stira Antnio Eusbio e Manuel Alves, que se instalam no interior da tradio
(textual e social) para operarem uma subverso audvel capaz de actuar dentro
das entidades e dos discursos modelados num surdo e intransigente esprito de
casta (Quimporta que alguns Senhores/ Me neguem o pensamento?/ H de burros
mais de um cento/ Com ttulos de doutores!/ Mas porque so possuidores/ De
centenares de cruzados,/ Julgam que sobre os montados/ S medram bestas de
carga!.../ Tm razo: a vida amarga/ a herana dos desgraados[38])
e sobre os vultos caricatos de espcies distintas, embora subordinados ao mesmo
impulso de vaidade, mentira e poder (J vi vares com firmeza,/ Fidalgos sem
fidalguia,/ Senhores sem senhoria/ E morgados sem riqueza./ J vi pobres sem pobreza,/
Mestre sem ter aprendiz,/ Taverneiro sem ter giz,/ Soldado sem ter capote,/ Mas
padre andar de chicote,/ S o prior da Matriz[39]).
Pela stira, que provoca admirao quer pela intuio do abismo profundo que
a natureza humana quer pela sagacidade e agudeza dos contrastes
tcnico-textuais que do a ver os contrastes sociais absolutos, o poeta
relaciona grandeza e dor.
Concludo este parntesis (em que nos demormos mais do que
a princpio prevramos), debrucemo-nos pois sobre Antnio Aleixo, para assentarmos,
em primeiro lugar, que a materialidade do poema aleixiano j nasce com o
registo da fala sublinhado, a frase ou verso coloquializados, as expresses e
as palavras vocalizadas, como que se construindo numa cristalina e desafectada
estetizao do dizer. Sob o signo da deriva e da descontinuidade do fragmento,
cada stira de Aleixo transporta, em correlao inextricvel com a musicalidade
e o ritmo dos vocbulos, com a versificao desenvolta, uma pregnncia de
significados que vibram com um desassossegado arrebatamento, sem que
transparea, numa primeira anlise, o que afinal , no o produto de uma
espontaneidade individual e colectiva[40],
mas a expresso mxima de um aticismo que se trabalha, se refina, se burila.
Essa naturalidade, essa fala informal propcia a afirmaes de moral prtica
que servem o resoluto e desenganado julgamento aleixiano da vida e do ser
humano, traduz-se, antes de mais, na graa, na elegncia e no casticismo
atinentes brevidade e (aparente) simplicidade de recursos mentais e
expressivos. questo da potica associa-se um importante elemento
antropolgico radicado na cultura do grupo: o poder da indignao (que ,
primeiro, uma necessidade de dimenso existencial), no o poder desregrado e
transitrio da eloquncia ordinria, antes o da palavra dita, recitada,
pertencente a um polissistema semitico que excede o poeta mas no qual ele
desempenha um papel decisivo, de, praticamente, demiurgo.
As stiras aleixianas, pequenos tratados cuja realizao
expressivo-formal, em especial a quadra e a dcima de metro heptassilbico,
carreia superfcie a profundidade de uma grande sabedoria tica, a reescrita
esteticamente afinada de uma experincia vivida em tom dolorido, so admirveis
pelo amplo flego sinttico que apreende com exactido factos caractersticos
da realidade quotidiana portuguesa, mas tambm, a partir dela, da prpria
condio humana (Nem amor nem herosmo/ Tinha a nossa vida atroz,/ Se o nosso
grande cinismo/ C dentro tivesse voz[41]
ou Vem da serra um infeliz/ Vender smea por farinha;/ Passado tempo j diz:
– Esta rua toda minha[42]).
Os elementos de sentido mais substanciais, aqueles que nos comunicam o contgio
da leitura inquieta sobre o significado do humano, vm directamente de um
sistema histrico, social e de classe, de, numa palavra, um regime (o
salazarismo) que insemina ou exacerba em Antnio Aleixo, como em outros nomes
da nossa literatura, essa melancolia e esse fatalismo (alegadamente) muito
portugueses que um Eduardo Loureno e um Jos Gil tm incessantemente procurado
compreender dentro de um quadro hermenutico de histria mtica. Na coleco de
Inditos, agora sem a carga de subentendidos
caracterstica da obra conhecida, a temtica poltica[43]
e o anticlericalismo[44]
jacobino constituem-se mesmo como os principais tpicos de uma atitude
desenganada perante a vida, que todavia no se quer destituda de vigilncia e
protesto. Nestes textos, pulsam a cada instante as preocupaes de um Aleixo
politicamente esclarecido, apto a perceber o nexo causal que faz depender do
poltico o religioso (lembremos que, em 1940, Salazar estabelece um
entendimento com a Igreja na base de uma Concordata), o econmico-material e o
sexual, quer dizer, a mera instrumentalizao destes planos ao servio de uma
ideologia ditatorial, assente nas noes de pobreza, frugalidade e pureza como
estado de probidade.
No discurso das emoes aleixianas mediadas por uma
racionalidade meticulosa, no que nesse discurso desgnio de formao humana
integral, o satrico e o sentencioso actuam em complementaridade e convergem
numa mesma sensao (que simultaneamente um dos grandes ideais do humano): a
de que se est a recriar o mundo com palavras e a de que se vive atravs delas,
com e para elas. esta, portanto, uma stira humanista, a que, diferentemente
do que escreve alguma crtica menos preparada e esclarecida, no falta
diversidade (e inovao) metafrica, j porque se labora com a multiplicidade
de experincias, imagens e linguagens do mundo concreto, j porque o abstracto
e o intuitivo so reificados num cdigo verbal que tambm atende ao imperativo
da inteligibilidade imediata (mas no simplista, uma vez que a sinceridade
verbal comea logo por articular-se com a ntima e intransmissvel
autenticidade de cada ouvinte/leitor): Fala quanto te apetea,/ Mas desculpa
que te diga/ Que te falta na cabea/ O que te sobra em barriga ou Tem quase
um palmo de boca,/ No pode guardar segredos;/ Porm a testa que pouca:/
Tem pouco mais de dois dedos[45].
Por estes exemplos lapidares e incisivos se v como um texto que originalmente
possa ter sido suscitado por uma qualquer circunstncia de histria biogrfica,
e at, numa perspectiva de tica social, desarrazoada e cruel, adquire sem
reservas o estatuto de pensamento potico universal. O acento de verdade
imediata, e a capacidade de formulao de juzos morais (porm nunca, ou raras
vezes, moralistas, antes revolucionrios, como reaco a um regime, esse sim,
moralista em termos alis muito primrios), no se perde mesmo nos poemas
investidos de um maior peso do contingente individualizado: O meu merceeiro
um santo/ E h quem diga que ele mau!/ Digo-lhe s: – Dou mais tanto,/
J me arranja bacalhau[46].
Anulados os ndices referenciais que s em tempo til valeram como nominalidade
circunstante, a historicidade do poema transcendentaliza-se e torna-se
a-historicidade. A economia de meios formais no estranha a este estatuto de
maioridade. O que a conteno verbal acarreta o sortilgio do dito que tudo
diz, no por se esgotar na condio de enunciado com um determinado elenco de
palavras e versos providos de um significado rgido, mas por a sua propriedade
minimalista lhe garantir o estado de texto dos textos (os que se abrem a cada
leitura/audio).
No por mero acaso, pois, e abordmos apenas uma parte,
pouco mais do que desejadamente representativa, da produo potica satrica
aleixiana, esta uma obra que se tem expandido no espao e no tempo, primeiro,
durante a vida do poeta, com a reedio das diversas brochuras que constituem o
corpus seleccionado para publicao, e, depois,
desde 1969, com as sucessivas reedies dos diversos conjuntos entretanto
arrolados sob o ttulo genrico de Este Livro que Vos Deixo..., a que, em 1984, se acrescenta um segundo volume, j aqui referido,
de Inditos, editado pela primeira vez em 1978.
[1] Recordando a argumentao de Costa Pimpo
num livro, Gente Grada, de 1952, David Mouro-Ferreira, num artigo de 1967, cita estas palavras
de Eugnio de Castro, datadas do ano da morte de Joo de Deus: Da mesma forma
que a natureza leva sculos e sculos para formar um brilhante, Joo de Deus
levava dias e dias, meses e meses para formar um poema (A propsito de Joo
de Deus, in Tpicos Recuperados, Lisboa, Caminho, 1992, p. 127). Seja como for, a crtica dos nossos dias
continua a descrever e interpretar a esttica deste poeta atravs desses
tpicos ambguos e imprecisos.
[2] O erotismo de Joo de Deus, in Sob
os Signos de Agora,
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, p. 80.
[3] Cleonice Berardinelli, que, em termos
liminarmente absolutos, distingue – erradamente, como j provmos noutro
lugar – lirismo e stira, ajuza: No esperemos do lrico Joo de Deus
um poeta participante, como foram, em parte, Antero de Quental ou Guerra
Junqueiro, seus contemporneos em Coimbra; o seu tema o amor: amor mulher e
amor a Deus. S o satrico – bem menor que o lrico – reflectir
preocupaes polticas e sociais, traando caricaturas das instituies e dos
que as mantm (Joo de Deus, in Estudos de Literatura Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1985, pp. 123-124).
[4] Campo de Flores. Poesias Lricas
Completas, coordenadas sob as vistas do autor por
Tefilo Braga, tomo II, 5. ed. – ne varietur, Paris / Lisboa, Rio de
Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, s.d., p. 9.
[5] Idem,
p. 163.
[6] Idem,
p. 151.
[7] Idem, p. 170.
[8] Idem, pp. 1-3.
Tefilo Braga
observa que Joo de Deus constri a stira O dinheiro a partir da cantiga
popular Coitado de quem no tem/ Na bolsa talim, talim, suprimida,
entretanto, na edio das Flores do Campo, com o que prejudica a
beleza da neuma epigramtica do estribilho (As Modernas Ideias na
Literatura Portuguesa, vol. II, Porto, Livraria Internacional de Ernesto
Chardron / Lugan & Genelioux, 1892, p. 31). Seja como for, o incansvel
estudioso releva a perfeio e a graa da arquitectura estrfica, bem como o
admirvel poder de evocao pitoresca dos modismos e coloquialismos. Desta
notao de natureza tcnico-estilstica e de gentica textual parte Tefilo
Braga para a demonstrao de que este poema entronca nas concluses da longa e persistente experincia
histrico-literria em torno do jogo sobre a personificao do dinheiro: desde
a poesia medieval latina dos poetas da corte, passando pelos goliardos, os
estudantes por quem se estabelecia uma ligao mediata entre as classes ditas
populares e os eruditos latinistas, e, j no final da Idade Mdia, pelos poemas
monorrimticos, de reminiscncia trovadoresca, do Arcipreste de Hita, at,
ainda depois das grandes descobertas da Amrica e da ndia, que aumentaram
fantasticamente a riqueza da Europa (idem, p. 37), aos autores europeus e ibricos que vem no
dinheiro o verdadeiro cavaleiro andante, como o pinta Quevedo na sua Letrilla
graciosssima: Poderoso caballero/ Es Don dinero.// Madre, yo al oro me humillo,/ El es el mi amante y mi
amado;/ Pues de puro enamorado/ De continuo anda amarillo:/ Que pues dobln
sencillo,/ Hace todo cuanto quiero,/ Poderoso caballero/ Es don dinero.// Nace en las Indias
honrado/ Donde el mundo le acompaa;/ Viene morir en Espaa,/ Y es en Gnova
enterrado:/ Y pues quien le trae al lado/ es hermoso aunque sea fiero:/ Poderoso
caballero/ Es don dinero.// [...] (idem, pp. 37-38. Sublinhados no original).
Quevedo, por seu lado, que, ainda Tofilo Braga quem o memora, sanciona
zelosamente naquele estribilho um ttulo – Dom Dinheiro – dos antigos fabliaux gauleses (idem, p. 40).
[9] Campo de Flores. Poesias Lricas Completas cit., p. 11.
[10] Idem, pp. 50-51.
[11] Idem, p. 72.
[12] com esse enunciado que, a
encerrar o segundo canto da Divina Comdia, Dante, protagonista na personagem do Poeta,
declara toda a sua dedicao ao poeta romano Virglio, que lhe aparece em
esprito e promete acompanh-lo.
[13] Com os seus enunciados interrogativos,
dubitativos, exclamativos e reticentes, No aniversrio da paz porventura o
melhor poema desse tipo, um poema de espera pelo verdadeiro tempo de
positividade humanista, de compromisso com o ethos democrtico e com a rejeio das
tiranias (Ainda a vitria no desceu terra): Musa da guerra que alegrias
cantas?/ Quem ergue e agita as triunfantes palmas,/ Se um espasmo de dor prende
as gargantas/ E a treva ensombra os coraes e as almas?// Ainda a vitria no
desceu terra.../ Ainda, ainda um falso nome.../ Mal se deliu um torvo
espectro – a guerra/ Aumentou logo o velho espectro – a fome.//
Amorteceu o pvido estampido/ Das vozes dos canhes, repercutentes,/ Mas enche
o mundo inteiro outro rudo:/ – Milhes de bocas a ranger os dentes!// H
nos tratados expresses de paz,/ Mas interroga e brada a multido:/ Que bem nos
veio dela? O que nos traz,/ Se no nos deu contentamento e po?!... (Avena
Rstica, Lisboa,
Livraria Editora Guimares & C., s.d. [1927], pp. 21-22).
[14] Musa Crula, Coimbra, Livraria Portuguesa e Estrangeira, 1894, pp. 11-12.
[15] Idem, p. 7. Sublinhados no original.
[16] Como nuvem de lgrimas, pairando/
Sobre os tectos esguios da cidade,/ Vai-se morosamente desdobrando/ Um grande
vu de sombra e de humidade.// A nvoa faz-me mal, pem-me doente,/ Torna-me os
nervos moles, anormais,/ E estes sinos dobrando lentamente,/ Ainda me abatem e
entristecem mais.// Sigo, rua fora, a ver se me distraio./ Entro para um caf.
Jogo o bilhar./ Trazem-me um boque. detestvel. Saio./ E os sinos que no
deixam de tocar!// Inquiro duns amigos que esto juntos/ (Amigos?! A amizade o
que ser?)/ Por que dobram os sinos a defuntos./ Penaliza-me a nova que um me
d.// Morreu a filha a um vendedor de panos/ Que empresta a juros de cinquenta
ao ms./ E o pai h-de viver por largos anos.../ Oh justia de Deus, como tu
s!// Notcias que se prendem com a morte/ Causam maior pavor num dia assim./
Para reagir, para fazer de forte,/ Ponho-me a gracejar de mim pra mim://
costume na noite de finados/ Iluminar a cova em que se reza./ Eu, desde j,
dispenso tais cuidados./ Nunca pude dormir de vela acesa.// [...]// Um trunfo
dominante do governo/ Passa de trem, numa andadura lesta./ Que triste coisa
andar a p no inverno.../ Mal empregado pra aquela besta!// Com modos de
palerma que me irritam/ Pra um rapaz e diz-me: – Ol! doutor!/ Coitado,
um dos raros que acreditam/ Que eu tenha um poucochinho de valor...// Entro
no quarto e vejo um sobrescrito./ Curvo-me a ler. Carta de minha me./ Louvado
seja Deus, que este maldito/ Este agoirento dia – findou bem... (Versos, 5. ed., Lisboa, Livraria Editora
Guimares & C., s.d., pp. 105-109).
[17] Avena Rstica, pp. 9-11.
[18] Pp. 45-46. Sublinhados no original.
[19] Augusto Gil, in Entre Fialho e
Nemsio. Estudos de Literatura Portuguesa Contempornea, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1987, p. 315.
[20] 2. ed., Paris / Lisboa, Rio de
Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, 1914, p. 101.
Sublinhados no original.
[21] Idem, pp. 157-158. Sublinhados no original.
[22] 3. ed., Lisboa, Livraria Editora
Guimares & C., 1920, p. 12.
[23] Idem, p. 137.
[24] Idem, pp. 15-16. Sublinhados no original.
[25] Versos, p. 65.
[26] Luar de Janeiro, pp. 79-80 e 94-95.
[27] Agostinho de Campos (org. e
introd.), Augusto Gil (Prosa e Verso), 2. ed., Paris – Lisboa, Livrarias
Aillaud e Bertrand, col. Antologia Portuguesa, 1923, p. 218.
[28] Avena Rstica, 55.
[29] Natlia Correia (seleco, prefcio e notas), Antologia
de Poesia Portuguesa Ertica e Satrica (Dos Cancioneiros Medievais
Actualidade), 3. ed.,
Lisboa, Antgona e Frenesi, 1999, p. 33.
[30] Idem, p. 333.
[31] O Canto da Cigarra, p. 14.
[32] Lisboa, Livraria Portuglia, 1942,
p. 28.
[33] Idem, p. 7.
[34] Idem, pp. 57-58.
[35] Cf., por exemplo, de entre os
diversos estudos em que Joo David Pinto Correia prope um quadro taxionmico
para os textos da genrica e comodamente chamada literatura popular, Os
gneros da literatura oral tradicional: contributo para a sua classificao,
in Revista Internacional de Lngua Portuguesa, n. 9, Lisboa, Associao das Universidades
de Lngua Portuguesa, Julho de 1993, pp. 63-64.
[36] Fernando Cardoso, Poetas
Populares, 1.
vol., 6. ed., s.l., Edies Portugalmundo, 1989 (1. ed.,
1976), p. 65. Para uma apreciao terica e metodologicamente informada dos
quatro volumes desta antologia, preciosa mas a ler com muita cautela, devido
principalmente aos mltiplos erros de focagem e interpretao que atravessam os
prefcios e as introdues a cada um dos vinte poetas seleccionados, cf. o
comentrio de Joo David Pinto Correia, Acerca de Poetas Populares, in Colquio/Letras, n. 52, Lisboa, Novembro de 1979,
pp. 74-79. O equvoco, ou, melhor, o absurdo, dos juzos de Fernando Cardoso
pode avaliar-se por uma passagem, entre muitas, como esta, a propsito de
Antnio Maria Eusbio: Por tudo isto pertinente pensar onde teria chegado a
inspirao e o estro do Calafate, se este no fosse filho de um pobre pescador
ou se vivesse numa sociedade justa em que os homens nascem com iguais direitos
de acesso cultura. Jlio de Castilho como que nos responde em parte:
Perdeu-se ali um Tolentino. Mais grave, todavia, o apontamento conclusivo:
De facto, se no fosse a falta de cultura, a sua frtil inspirao lev-lo-ia
por certo a ser, seno [sic] um 2. Bocage, um 2. Nicolau Tolentino (Poetas Populares, 2. vol., 5. ed., s.l., Edies Portugalmundo, 1990 (1. ed., 1977), p. 52).
Donde, como notvamos, a importncia da apreciao crtica do autor de Acerca
de Poetas Populares, que citamos, porque se justifica, detidamente:
Contudo, o que nos surpreende mais, e com que no podemos contemporizar,
principalmente da parte de quem se mostra aberto descoberta dos valores
populares, a quase permanente anotao de que aqueles poetas produziriam
poemas muito melhores se tivessem acesso cultura institucionalizada. O que
naturalmente aponta para o preconceito de que a cultura popular ser
obrigatoriamente inferior cultura institucionalizada. Perguntar-se-: –
quem nos garante que estes poetas, uma vez integrados na cultura
institucionalizada ou oficial, continuariam a ser poetas com certa
representatividade? No se encontrar a sua criatividade sujeita a mecanismos
derivados do seu estatuto de pouco instrudos (que os capacitam para a produo
e para a transmisso de tipo oral, que, como sabemos, tm o seu funcionamento
prprio)? (p. 78).
[37] Fernando Cardoso, Poetas
Populares, 1.
vol., p. 67.
[38] Desafronta (de Manuel Alves), in idem, p. 80.
[39] Antnio Maria Eusbio, in
Fernando Cardoso, Poetas Populares, 2. vol., pp. 52-53.
[40] O conceito de espontaneidade ocorre
demasiadas vezes, em estudos sobre poesia oral ou de matriz oral, popular, como
equivalente tcito de primitivismo e de facilidade, de improvisao meramente
automtica e mecnica. Ora, ou se define com rigor o que se entende por tal
(errtico) conceito, ou ento esses discursos tericos e crticos no podem, a
um olhar mais atento e exigente, eximir-se de uma apreciao em que os termos
neles usados para a apreciao dessa poesia, no que ela tem de melhor, de
reinveno dos seus prprios esquemas (de conscincia fenomenolgica, por
conseguinte), acabam por se lhes reportar com percuciente legitimidade:
simplismo e superficialidade. necessrio que se perceba que o que caracteriza
essa produo, quer dizer, uma impresso de instantaneidade, no existe ex
nihilo: procede,
antes, por assim dizer, de um complexo palimpsesto cujo centro gravitacional
– o literrio – interage estreitamente com outros cdigos (como o
social, o cultural, o poltico e o religioso), com a supremacia relativa da
estrutura que dada a ouvir/ler em palavras.
[41] Este Livro que Vos
Deixo..., vol. I, prefcio e notas preliminares de Fernando Laginha
e Joaquim Magalhes, 18.
ed., Lisboa, Editorial Notcias, 2003, p. 20.
[42] Idem, p. 21.
[43] Uma quadra como a seguinte, que,
conforme nota Joaquim Magalhes no texto introdutrio dos Inditos (Este Livro que Vos Deixo...
Inditos, vol. II,
13. ed., Lisboa, Editorial Notcias, 2003 (1. ed., Loul, 1978, sob o ttulo Inditos; 1. ed., 1984, como parte integrante do
ttulo Este Livro que Vos Deixo...), p. 25), Aleixo
enderea a um certo poltico, em Maio de 1945, no perde actualidade com a
cessao do ambiente evocativo de origem: Esse sujeito capaz/ De nos fazer
mil promessas,/ Mas faz-nos tudo s avessas/ Das promessas que nos faz (idem, p. 151). O nome e a poltica de
Salazar so j nomeados numa composio de que irradia um aliciante sarcasmo
irnico: Com uma gravata vermelha?!.../ Tem cuidado, no te esquea:/ –
Que Salazar aconselha/ Muitas cores, menos essa (idem, p. 148). A mesma personagem
histrica, de acordo com uma informao do mesmo Joaquim Magalhes, desencadeia
este texto revoltado, que dilui a hipcrita promessa salazarista de eleies
to livres como na livre Inglaterra na saturao de verdade do discurso de
denncia: Prometem ao Z Povinho/ Liberdade, Lar e Po.../ Como se o mundo
inteirinho/ No soubesse o que eles so! (idem, p. 151).
A Incio Jos Melrinho, tambm poeta popular
tradicionalista, quarenta anos mais velho que Aleixo, pertence um poema que
surpreende pela ousadia da acumulao de actos sociais perversos atribudos a
Salazar. Registamo-lo na ntegra, como abonao de um conjunto indeterminado de
composies que, como se de uma voz colectiva se tratasse (que, em certa
medida, ), traa o perfil poltico e humano dessa figura incontornvel da
histria portuguesa, a partir de um olhar (do povo, na acepo acima
salientada) que uma retrospectiva em jeito de biografia, produzida, neste
caso, na ressaca da morte do estadista: Mote. Salazar para o burgus/ foi um
homem de valor/ deu ao povo portugus/ misria, fome e terror// I. Carrasco sem
corao/ tantos lares arruinaste/ tantos homens que mataste/ tantos que tens na
priso/ meteste na escravido/ todo o povo portugus/ todos os crimes que fez/
no esquecem humanidade/ tu s deste liberdade/ Salazar para o burgus// II.
Tua vida terminou/ fascista sem corao/ deste tanta aflio/ a quem no te
prejudicou/ todo o mundo te considerou/ como o maior ditador/ foste tu o
fundador/ da ditadura fascista/ s para o grande capitalista/ foste um homem de
valor// III. Falavas na lei de Deus/ lei que nunca cumpriste/ todos sabem que
no seguiste/ nenhum mandamento dos seus/ seguiste a lei dos judeus/ matando
quem tanto bem fez/ homens de bom corao/ quarenta anos de escravido/ deste
ao povo portugus// IV. J basta de opresso/ velho povo portugus/ tanto mal a
todos fez/ esse homem sem corao/ meteu-nos na escravido/ e olha-nos com
rancor/ nunca ao pobre deu valor/ bastantes centenas prendeu/ tudo isto ele nos
deu/ misria, fome e terror (Modesto Navarro, Poetas Populares Alentejanos, 2. ed., Lisboa, Vega, s.d. (1.
ed., 1980), pp. 75-76).
[44] Por exemplo: Os padres so neste
mundo/ O melhor que h pra comadres;/ Podem ser bons, mas no fundo,/ Pra mim
so apenas padres (Este Livro que Vos Deixo... Inditos, vol. II, p. 72).
[45] Este Livro que Vos
Deixo..., vol. I, p. 20.
[46] Idem, p. 22.