|
Nogueira, Carlos. Para uma teoria da anedota
popular portuguesa. Culturas Populares. Revista Electrnica 3 (septiembre-diciembre 2006). http://www.culturaspopulares.org/textos3/articulos/nogueira.htm ISSN: 1886-5623 |
Para
uma teoria da anedota popular portuguesa
Carlos Nogueira
Resumo
Corpo errtico e voltil por excelncia, a anedota
constitui porventura o gnero do discurso atravs do qual uma comunidade
(conceito, como se sabe, cada vez mais alargado) mais dinmica e prontamente
comenta os sentidos dos mltiplos fenmenos –ticos, culturais,
filosficos, pragmticos, etc.– com que a cada passo se confronta e
(re)constri. Operando, antes de mais, em termos de uma concepo ldica da
vida, a anedota distende-se por mltiplas e versteis conformaes de natureza
tipolgica, tropolgica e topolgica.
Palavras-chave: Portugal, anedotas.
Resumen
De cuerpo errtico y
voltil por excelencia, la ancdota tal vez constituya el gnero del discurso a
travs del cual una comunidad (concepto, como se sabe, cada vez ms amplio)
comenta de forma pronta y dinmica el significado de los mltiples fenmenos
-ticos, culturales, filosficos, pragmticos, etc.,- con los que a cada paso
se confronta y (re)construye.
Operando, antes que otra cosa en trminos de una concepcin ldica de la
vida, la ancdota se desarrolla mediante mltiples y verstiles conformaciones
de naturaleza tipolgica, tropolgica y topolgica.
Palabras
clave: Portugal,ancdotas.
Abstract
Erratic
and volatile par excellence, anecdote may be the discourse genre most used by any community (a concept that becomes more broader with
time) to comment, in a fast and
dynamic way, the meaning of the many phenomena -ethical, cultural,
philosophical, and pragmatic among others- it confronts, and with which it
(re)builds itself. Operating overall in terms of a ludic conception of life,
anecdotes develop through many and versatile conformations of tipological, tropological
and topological nature.
Key
words: Portugal, anecdotes.
A |
anedota
a forma simples mais metamrfica, omnipresente e perene da cultura da
globalizao, considerada por muitos como pouco nobre ou digna, j porque se
vale de um estilo despojado de artifcios retrico-estilsticos (mas apenas se
os reduzirmos a funes lrico-narrativas etreas e asspticas), j porque, no
poucas vezes, traduz eventos e usa expresses e termos ditos obscenos ou
grosseiros (que, em rigor, s o so quando intentam ser injuriosos) ou com
pouco asseio, j porque est principalmente associada s classes mais baixas e
incultas da sociedade. Mas todos a consomem, ou todos riem ou sorriem com ela,
desde o intelectual ou profissional de quadros superiores at ao indivduo mais
bem-humorado e alheio a regras de etiqueta e boas maneiras. A fecundidade de
muitos tipos que caracteriza a anedota, na origem popular ou erudita, com a
certeza de que estes conceitos so cada vez mais fluidos, resolve-se no
processo de popularizao por que passam as anedotas que conquistam um lugar
nos arquivos orais, memoriais, ou escritos (estes, com muita frequncia, com
armazenamento e com suporte digital e analgico).
A existncia oral da anedota e, nos nossos dias, a sua escrita digital, uma das suas maiores foras, com este ltimo registo a assumir cada vez maior relevncia, prova de que o oral e o escrito se complementam mais do que se anulam, especialmente atravs dos novos meios tecnolgicos (ciberespao, CD-Rom, CD, telefone mvel), os quais possibilitam o trnsito imediato – e a universalizao, pelo menos no espao da lusofonia – de anedotas de criao recente. H uma nova gerao de anedotas cuja plenitude passa precisamente pela migrao atravs de correio electrnico (tambm a anedota grfica, ilustrada com desenhos) ou de telemvel[1], onde se hospeda quase como um vrus, com ou sem marcas lingusticas performativas (Seja humano, defenda as oliveiras, o azeite fonte de vida. Faa como eu, envie esta mensagem a todos os azeiteiros que conhece); um vrus que certamente necessita de uma familiaridade sui generis entre emissor e receptor, para que o que pretende ser um acto de comunho carnavalesca no resvale em mau gosto ou em agresso, que poder ser, nalguns casos, o que se persegue, em mensagem annima ou identificada (Se acordares e deres conta de que tens 4 tomates, no julgues que s o super-homem: ests a ser enrabado). Embora esta linhagem se insira na ascendncia anedtica em que narrador e protagonista ou intrprete principal coincidem (nos cmulos, por exemplo), no se confunde com ela, visto que agora o receptor interpelado mais directamente ou integra o episdio relatado como actante caricato, ridicularizado por meio de um humor cido e destemperado (Estive a falar com um amigo teu de infncia e ele disse-me que tu eras muito mau. Punhas pedras no rabinho para magoar as pilinhas dos midos); diferentemente, como se v, do tipo anedtico mais comum, marcado pela alteridade do contador relativamente aos sucessos narrados, pela postura de certo modo distanciada, se bem que no obrigatoriamente indiferente. J neste interessante paradigma de uma das formas que a anedota pode adoptar, a da linguagem publicitria, esse alheamento absoluto, o que mostra bem como mesmo aquele modelo mais tradicional se proporciona a reajustamentos: Vende-se Renault cltoris de 16 vulvas, masturbo, com ereco assistida, bicos elctricos, cona rotaes, mamabag para condutor e passageiros e jantes de pila leve. E no se pense que a fixao do texto oral da anedota em texto electrnico implica a sua rigidez, a sua linearidade e o seu limite. Nesse formato, a anedota continua a ser permevel a variaes, sejam cortes, ampliaes, actualizaes, acomodaes ou qualquer outra mutao. A difuso da anedota j no se aperta nos limites estreitos do livro impresso, do manuscrito ou da publicao peridica (folhas volantes, almanaques, jornais, revistas); nem se circunscreve oralidade de primeiro grau, nem comunicao interpessoal in praesentia, porque se dispersa e pulveriza atravs da oralidade directa ou diferida, na rdio e na televiso, das mensagens electrnicas, que criam a iluso da proximidade fsica ou, mais ainda, atravs das salas de chat, nas quais se comunica em tempo real. Donde a edificao de uma espcie de emissor demirgico, capaz de, com uma simples tecla, desviar o texto para mltiplos receptores, sem barreiras de tempo, de espao ou impedimentos censrios. A anedota beneficia pois da qualidade de objecto absoluto, porquanto a mesma forma armazenada nos numerosos sistemas de multimdia, e, ao mesmo tempo, de objecto cumulativo, associativo, instvel, latente, operando-se entre essas duas configuraes como que uma mtua devoluo dialctica, progressiva, criativa.
A
anedota hoje o gnero da literatura popular que manifesta a mais profunda e
vertiginosa metamorfose na produo e nas suas tcnicas, na reproduo, na
dinmica e na estrutura dos veculos e nas prticas de recepo. No mesmo
registo, coabitam anedotas provavelmente criadas de raiz para a imaterialidade
das entidades electrnicas com verses j tradicionalizadas. O que significa
que, no mesmo ambiente tecnolgico, confluem momentos distintos do processo de
vida da anedota, quer dizer, a reproduo, a distribuio e a recepo,
acrescentando-se, nalguns casos, a prpria criao ou recriao.
O
aproveitamento mais organizado e massivo da versatilidade da anedota, na
sociedade portuguesa do ldico hedonista, do inapelvel triunfo do primado do
prazer sobre o primado da realidade, pertence actualmente indstria
televisiva, origem e veculo por excelncia de um moderno fenmeno simblico de
carnavalizao perene, de festa popular que se institucionaliza, sem contudo
perder a sua fora maior: a inverso e a negao da lgica racionalista,
categorias que actuam desde o texto mais singelo e inocente (Duas moscas iam a
voar; de repente, uma pra e diz: – espera que me entrou um mosquito para
o olho) at ao mais carregado de conotaes religiosas, polticas, tico-morais
(– Gostas de midos [de frango]? – Sim. – Ento s pedfilo).
Os agentes desta manifestao folclrica so actores profissionais, obreiros de
uma Fbrica de Anedotas
que quase sempre difunde produes recicladas, atribuindo-lhes a iluminao de
pea teatral interpretada por vrias personagens, no que se distinguem do
contador tradicional, daquele que congrega em si diferentes individualidades.
Mas hoje esta especificidade muito particular e tpica do sistema
comunicacional que Joo Barrento denomina de populismo cultural meditico[2]
tambm vedetariza o cidado comum, eleito o melhor de entre os melhores em
programas (Levanta-te e Ri,
por exemplo) que praticamente lhe outorgam o estatuto de contador profissional
e de onde pode partir para a gravao de discos e de cassetes de vdeo. Em
todos estes contextos, exige-se conteno, brevidade, naturalidade,
simplicidade, verdade, ou no funcionar o mecanismo de mise en abyme que arquitecta grande parte das anedotas.
No todavia nessa linguagem
dramatizada, cujo sucesso comercial imediato se encontra apenas ao alcance da
televiso, que reside um dos ncleos mais surpreendentes e funcionais da
anedota como nica textualidade da imprensa do povo (inclusivamente diria, no teletexto) da nossa
contemporaneidade, pregnante de densos sentidos para quem quer que se arroje
definio caracterolgica dos entes e dos contraentes (Alberto Pimenta)
portugueses; definio que, ao contrrio do que entre ns regra quase sem
excepes, no deveria cingir-se a consagrados textos literrios, histricos,
filosficos, ideolgicos, etc. Ainda que a anedota, neste poderoso mdia
audiovisual, se caracterize pela domesticidade e universalidade,
instantaneidade e ubiquidade, a minuciosa programao e seleco a que obedece
no concilivel com os cursos erradios, sinuosos e difusos do texto anedtico
centrpeto que sinaliza figuras sobre as quais incide uma determinada
particularidade de interesse pblico. Claro que algumas vezes a anedota
pessoalizada perde o nome prprio que identifica o protagonista para adquirir
contornos impessoais, mas s em propores muito nfimas possvel recuperar
nessas anedotas compsitas a pcara existncia nacional no annima, ou porque
h um cdigo deontolgico que visa proteger a integridade das pessoas reais da
vindicta de certos grupos ou de todo um pas, ou porque h um desfasamento
cronolgico entre a vigncia desses textos e a realizao de tais programas. A
anedota assim reflexo e, concomitantemente, ensaio das metamorfoses que se
perfilam na sociedade, seja nos espaos familiares, com as suas vtimas, os
seus mrtires, os seus submissos, os seus carrascos, os seus dspotas, as suas
obsesses, as suas psicoses, seja nos crculos nacionais, com clivagens mais ou
menos cavadas entre as classes, as etnias, as regies e os pases (o branco e o
preto, o alentejano e o lisboeta, o Norte e o Sul, o Portugus e o
Brasileiro...) que constituem o todo ptrio, seja no mbito internacional ou
mundial. Composta por nomes respeitantes a mundos to variados, s vezes em acumulao,
como os da poltica, do futebol, da televiso, das perverses sexuais, a
galeria de notveis compreende, entre muitas outras, as personalidades
influentes de Antnio Guterres, Duro Barroso, Pinto da Costa, Manuel
Vilarinho, Valentim Loureiro, Vale e Azevedo, Carlos Cruz, Carlos Silvino,
George W. Bush e Usama Bin Laden.
A anedota preparada para a
realidade sedutora do ecr com a configurao de sketch curto incorre com frequncia na
contrafaco Kitsch da
verso que vive na oralidade. Esse desvirtuamento deriva sobretudo da
derrogao ou do encobrimento eufemstico da sexualidade ou do impudico,
procedimentos expurgatrios que geralmente redundam na anulao do efeito
anedtico. A omisso ou a substituio do palavro revelam aqui uma atitude social
que contm tanto de paradoxal como de lio de sociologia, de antropologia, de
psicanlise histrica e social. Na mesma sociedade que com estes expedientes
moralistas quase imperceptveis contribui para a estigmatizao do palavro, na
mesma sociedade em que as cantigas dos Mata Ratos, dos Mo Morta, de Pedro
Abrunhosa ou dos Kussondulola ou a literatura de Antnio Lobo Antunes, de
Miguel Esteves Cardoso, de Alberto Pimenta ou de Adlia Lopes continuam a ser
lugares de contracultura ou de cultura radical, convive-se sofregamente com
programas (Big Brother, Acorrentados, Bar da TV, Bombstico, Eu
Confesso, Escndalos e Boatos, Vidas Reais...) cujo alinhamento prescinde
do pressuposto contextual elementar que rege as tnues fronteiras da tica e da
esttica da recepo do palavro, do obsceno, do indecente; pressuposto que
assenta na instabilidade dos contextos e dos usos do palavro, que o , ou no
o , conforme as coordenadas sociolgicas que acolhem o seu emprego (quem
comunica, como e onde se comunica) e a intencionalidade do emissor, medvel at
no timbre, na altura, na entoao de uma voz que pode apresentar-se segura ou
temerria, agressiva ou pacfica, complacente ou intransigente, sonora ou
clandestina, hipcrita ou sincera. Seja como for, este jogo de interdies e de
liberdades, de actos oportunos, inoportunos ou oportunistas, de modas e de
modos de pensar e de agir com e sobre o palavro repercute afinal a eterna
problemtica do relacionamento tenso do ser humano consigo prprio e com os
outros, com as palavras e com o seu peso, a sua espessura e as suas valncias.
Mau grado estas diferenas entre
a anedota popular, oral ou escrita, e a congnere televisiva, ou outras
dessemelhanas de tipo mais tcnico e material, j que o que numa apela para a
imaginao do ouvinte ou do leitor e para a percia histrinica do contador, na
outra da ordem das artes de representao televisiva, cinematogrfica ou de
palco, mau grado tais diferenas, dizamos, ambas participam da mesma unidade
substantiva, respondendo com eficcia s transformaes tecnolgicas,
culturais, econmicas e sociais de um pas que se quer cada vez mais
industrializado, avanado e ps-moderno. Se a legitimidade da anedota vem, em
primeiro lugar, do imprevisto e da curiosidade que ela desperta, movendo
gradual ou bruscamente o receptor ao riso, no custa perceber a sua conformao
como pea escrita ou dita, com maior ou menor recurso a encenaes
profissionais ou tecnolgicas, materializadas, em ltima instncia, em imagens
em movimento, de carcter conciso, apressado, com as exigncias de sntese e de
condensao, caractersticas dos novos meios de comunicao electrnicos, a
maximizarem ainda mais essa j intrnseca propenso para a economia de meios
lingustico-discursivos; como no custa conferir nem medir a importncia que
nela desempenham os vrios mecanismos do cmico, independentemente de a se
relatar ou evocar um facto histrico ou um episdio imaginrio.
Tal
como a adivinha, a anedota encerra muito de desafio e de risco, convocando a
agudeza do receptor, enquanto sopesa a sua integridade e a sua identidade como
membro de um grupo. Existe alis uma modalidade anedtica que partilha com a
adivinha a estrutura dialgica ou interrogativa, sem todavia constituir uma
adivinha propriamente dita, j que a resposta no est contida (cifrada ou
disfarada) na pergunta[3],
mormente os cmulos ou as concisas e bruscas perguntas-problema iniciadas por
tpicos interrogativos como Sabes qual , Sabes como, O que que diz ou
Por que que. Este processo de socializao pela anedota comea muito cedo
nas crianas (cerca dos quatro anos), pelo que o interesse destes textos pode
ter um importante alcance pedaggico. Antes de mais porque o riso, manifestao
de inteligncia e de sade mental, intelectual e fsica, uma das melhores
pedagogias, ao mesmo tempo que suporta a maturao lingustica e conceptual.
O propsito faceto e a subverso
ou perverso da ordem instituda so elementos constituintes de base, a que
convm acrescentar os princpios da sua potica, comuns a qualquer curta
narrativa ficcional ou a todo o texto literrio, aqui em moldes que no travem
a sua inscrio no circuito oral ou, marcado pela rapidez de consulta, escrito
(em documento impresso ou digital, instncias que se mobilizam mutuamente, como
se depreende, por exemplo, da edio de As Melhores Anedotas da Net de Pedro Alegria[4]):
a vertente de fico, que se relaciona com o conceito de independncia
artstica, por sua vez implicado com a criao de um mundo verosmil; a
coerncia textual, que resulta de mecanismos lingusticos (regras de
morfologia, de sintaxe, etc.), os quais asseguram a articulao entre os
formantes da estrutura de superfcie (unidades lexicais e fonolgicas); os
diversos estratos que fazem da anedota uma entidade orgnica e polifnica,
designadamente o estrato dos sons –fontico– portadores de
significado esttico y pragmtico (ritmo, metro, rima, aliterao, etc.), o
estrato das unidades de significao (processos de produo de sentido como o
tom ambguo, os registos valorativos, os tropos de aplicao sobretudo
semntica (metfora, comparao, paradoxo, etc.), o smbolo e a imagem; o
estrato das projeces objectivas a que Roman Ingarden chama intencionadas, no
sentido de que no carecem de ser verdadeiras, j que apenas apresentam um
aspecto exterior da realidade que no pretende ser inteiramente assumido como
autntico (por exemplo: as personagens, o espao, o tempo, as aces do
universo de fico); e o estrato dos aspectos esquematizados, no qual se
combinam vectores dos demais estratos, segundo uma simbiose em que os objectos
assim produzidos obedecem, at certo ponto, a uma predeterminao que oriente o
sentido da audio ou da leitura, sem no entanto obstruir eventuais leituras diversas.
De igual modo, a anedota ostenta uma dimenso intertextual, porque pode
relacionar-se com outros textos que com ela dialogam e nela se projectam,
enquanto se desdobra em variantes que continuamente se fertilizam. Essa
simplicidade, que apenas hipottica e que no obsta a que intervenham
recursos como a ambiguidade, a polissemia, a ironia, o sarcasmo e o humor,
explica em parte a notvel multiplicao e celeridade de um corpo literrio que
responde quase de imediato a episdios de natureza social, cultural, poltica,
religiosa, desportiva. Desta forma breve ou simples podemos dizer que conforma
um categorizado documento –uma autobiografia simblica–,
susceptvel de fornecer dados para o conhecimento de uma comunidade, de um
povo, de um pas, seus hbitos, suas aspiraes, seus mitos, seus medos, seus
heris vivos ou mortos, reais ou imaginados, seus mrtires, suas vtimas, suas
concepes do mundo e da vida. A tendncia da anedota para a impermanncia
entre o verdadeiro e o falso, o dito e o interdito, o ser e o parecer, o
verosmil e o inverosmil, o natural e o fantstico, a sua expresso muitas
vezes satrica e sempre humorstica so apenas alguns dos aspectos que geram
efeitos to diversos como os evasivos, os identitrios, os subversores, os sacralizadores
ou os teraputicos (controlo de energias negativas e de preveno da agresso).
Como gnero literrio popular,
oral e escrito, folclrico e no-folclrico, antigo e hodierno, a anedota
regimenta-se, de uma maneira geral, pelas mesmas normas que operam em qualquer
outra forma artstico-verbal da memria literria colectiva; e oferece ainda os
mesmos problemas de categorizao no s temtica ou funcional mas tambm
cronolgica. Teoricamente, a instintividade proteica da anedota, ou a sua
maleabilidade, instaura no gnero uma voragem irredutvel a demarcaes de
temas, de assuntos ou de motivos, pelo que ela se institui enquanto
interminvel e sempre inconcluso temrio de amplitude nacional e universal,
habilitado a receber, por conseguinte, todas as criaes ou contribuies
individuais, que, se entrarem no circuito de recepo, difuso, transformao,
se tornam quase de imediato produtos annimos e colectivos[5].
Mas, porque o desiderato que acompanha qualquer anedota , acima de tudo, o
riso, o arqutipo que virtualmente assiste a uma forma anedtica concreta est
menos presente do que noutro gnero da literatura popular. O eixo vertical
arquetpico, quer dizer, a orgnica hierrquica de textos, correlativa de um
conjunto matricial que agencia as subsequentes ocorrncias, patenteia na
anedota um compromisso muito pouco ou nada deferente em relao a esse texto
nico e inaugural. Essa singularidade gentica no perturba, dir-se-ia mesmo,
pelo contrrio, que potencia, a regulao da anedota pelas mesmas leis de
popularizao e de tradicionalidade a que obedecem as obras literrias
populares; ou, talvez com mais correco terminolgica e conceptual, pop, considerando quer a distenso das culturas
de massas quer a pluralidade de sentidos do campo do popular,
progressivamente mais sensvel a uma heterognea permeabilidade de produtores,
de mediadores, de consumidores, de contedos, de formas e de cnones. Essas
leis passam pela disseminao do produto individual, de que resulta o processo
de anonmia, pelo desdobramento em variantes, pela contaminao de peas a
princpio autnomas e pela persistncia, cuja graduao permite distinguir a
anedota popular da popular tradicional.
Aparentemente, e por aqui se
avalia a imperturbvel sade desta espcie literria to popular quanto
desprezada pelos estudiosos[6],
no h linhas temticas, assuntos, motivos, ideologias, referentes, linguagens
ou estilos imprprios para o vrtice verbo-simblico da anedota. A conexo com
a prpria etimologia da palavra, o plural neutro do adjectivo grego ankdotos, que significa no publicado, no sabido,
indito, entreve-se, no estdio vigente do gnero, apenas no sentido de relato
que o emissor admite ser original, pelo menos para aqueles a quem o transmite.
Um conceito exigente de anedota tambm no comporta, contrariamente ao que se
defende nalguns dicionrios e obras da especialidade, a afirmao da dominncia
ou da exclusividade dos traos da personalidade clebre, histrica, e da
inerente narrao de episdios factuais e informativos. O jeito volante,
irrequieto e volvel de cada anedota indica que s a moderao
terico-analtica favorece o tratamento srio do gnero, a que no faltam peas
protagonizadas por nomes histricos ou comuns, atinentes a um evento emprico,
de maior ou menor domnio pblico, ou mais factcias, inditas ou sobejamente
conhecidas, em processo de identidade ou j patrimnio de uma comunidade ou de
um pas. Do que no h dvida de que se trata de uma relao concisa,
destinada, com ou sem intuitos epigramticos, a provocar o riso mais pelo seu
contedo inusitado do que pelos jogos de palavras (que podem ou no comparecer
aqui acessoriamente), ou por um cruzamento inventivo entre contedos e
materiais lingusticos (a face, neste segundo conjunto, mais responsvel pela
hilaridade). Quer dizer, o engenho da anedota funda-se ora num incidente que
contraria a lgica ou num remate (que pode coincidir com aquele ou ser
independente), um dito de esprito que desenlaa equvocos[7],
duplos sentidos, tenses, e que, no raramente, investe os seus usurios de um
sentimento catrtico de superioridade, decerto mais forte do que a
intencionalidade evasiva (Juz, para o ru: – solteiro, casado, vivo
ou divorciado? O ru: – Nem uma coisa, nem outra, nem outra, nem outra.
Perteno ao quinto estado. – O qu? – Amigado[8]),
como se funda, ainda, numa linguagem que, articulada com o referencial
extralingustico, substitui os sinais dialcticos por sinais desestruturantes
de um argumento, de um julgamento, de um fio condutor manobrado conforme a
ortodoxia; uma linguagem cujo valor no est na denotao dominante, no
discurso limpo de excrescncias, assim delineado para melhor iluminar a
contradio e o inesperado, mas no que esse dizer tem de ldico, de brinquedo verbal (o caso do homem
a quem perguntam se capaz de dizer trs asneiras seguidas e responde,
inocente e descrentemente, com quatro: N. N sar fcel[9]).
A anedota consegue o que nenhuma
outra esttica literria ou artstica, nem mesmo o enrgico carnaval surrealista,
alguma vez logrou sequer vislumbrar: a liberdade humanista sem fronteiras, a
autonomia absoluta, a heterodoxia escandalosa e subversiva da falaciosa
civilidade (social, cultural, religiosa, poltica, etc.), a sublime capacidade
para se manter margem da moral e dos bons costumes. Perante a to complexa,
mediatizada e globalizada proliferao de suportes e de centros de produo e
de difuso que a engendram, albergam e reinventam, a anedota hoje um
epifenmeno das mltiplas e efmeras vanguardas que nascem das ramificaes da
cultura, ou da incultura, organizadas pelos poderes das sociedades ocidentais
ou ocidentalizadas (o mecenato, a economia, o financiamento, o mercado).
Indiferente a disputas sobre os conceitos de paraliteratura, de culturas ou literaturas
populares ou de massas, em cujos territrios entra como o mais destacado gnero
literrio dos primeiros anos do sculo XXI, a anedota segue o seu curso nmada,
a sua universalidade de muitas nacionalidades e naturalizaes.
[1] A superstio popular apropriou-se tambm
da caixa de correio electrnico e do telemvel para difundir mensagens
divulgadas at agora em suporte de papel: Aqui est o peixinho da sorte
><>. Ele d sorte no amor e ters uma boa notcia dentro de 4 dias, se
o enviares a 4 pessoas gentis, excepto a mim. Seno ele morre.
[2] Cultura, contracultura, anticultura, in
A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre a Cultura Contempornea, Lisboa, Cotovia, 2001, p. 21.
[3] Arnaldo Saraiva, Potica e enigmtica
das adivinhas populares portuguesas, in Actas do 1 Encontro sobre Cultura
Popular (Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Viegas Guerreiro), 25 a 27 de
Setembro de 1997, org. e
coord. de Gabriela Funk, Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1999, p. 435.
[4] Cascais, Arteplural Edies, 2002.
[5] Perante as mais de 3500 anedotas do
arquivo da Linha de Aco de Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa,
Linha de Aco N. 4 do Centro de Estudos Geogrficos, subsidiada pelo extinto
Instituto Nacional de Investigao Cientfica, A. Machado Guerreiro construiu a
classificao mais coerente e completa de que dispomos para o anedotrio
portugus. Na primeira edio do seu Anedotas. Contribuio para um Estudo (Lisboa, Editorial Imprio, 1986), o
autor organiza as mais de 2000 espcies seleccionadas em 16 grandes grupos e
112 rubricas, num esquema permevel a novos conjuntos ou subconjuntos. No grupo
da Vida Profissional, por exemplo, nota que cabem aqui as anedotas de todos
os grupos de profisses que recolhemos e os que ainda venham a juntar-se-lhes
(p. 86). No Livro de Anedotas. Da Inocente Indecente (Lisboa, Edies Colibri, 1996), a esse quadro taxionmico, submetido a
pequenos acertos relacionados com o acervo em questo, acrescenta um outro
grupo, o dos Aparelhos (Computadores, Relgios, Televiso, Radiorreceptores):
҃pocas da Vida (Nascimento, Meninice, Adolescentes, Namorados, Velhos); Vida
Sexual (Acto, rgos, Prostitutas, Homossexuais, Preservativos); Vida
Conjugal (Noivos, Casais, Adlteros, Vivos, Sogras); Vida Profissional
(Actores... Advogados... Barbeiros... Criadas... Bocage... Jornais... Juizes...
Mdicos... Polcias... Varinas, Videntes); Vida Poltica (Poltica,
Polticos); Deficientes (Cegos, Doidos, Gagos, Paralticos, Surdos);
Comportamentos Anmalos (Avarentos, Criminosos, Bbados, Distrados, Espertos,
Exagerados, Patetas, Peidorreiros, Bestialidade); Anedota da Anedota;
Adgios; Semilgicas; Anedota-adivinha; Humor negro; Irreligiosas;
Aproveitamentos de Linguagem (Calinadas, Aluses, Anfibologias, Lingusticas,
Rpidas, Ricochetes); Povos e Etnias (Americanos, Belgas, Brasileiros,
Canibais, Ciganos, Galegos, Franceses, Portugueses, Alentejanos, Pretos);
Animais Irracionais (Ces, Cavalos, Gatos, Macacos, Lees, Papagaios, Pulgas)
(pp. 30-31).
[6] Arnaldo Saraiva, "A anedota",
in Jornal de Notcias,
12/07/1988.
[7] Sobre o chiste, a forma que desata coisas, que desfaz ns (p. 206), cf. Andr Jolles, Formas
Simples. Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso, Memorvel, Conto, Chiste, traduo de lvaro Cabral, So Paulo,
Cultrix, 1976 (1. ed., 1930), pp. 205-216.
[8] A. Machado Guerreiro, Anedotas.
Contribuio para um Estudo, 10. ed., vol. I, Lisboa, ERL, Editora de Revistas e Livros, 1996, p.
349.
[9] Idem, p. 44.